IRRIGAÇÃO: VALOR DE UMA ITAIPU SALVARÁ O NORDESTE


 
          O Sudoeste dos Estados Unidos depende, inteiramente, para abastecimento urbano e industrial, bem como para irrigar numerosos projetos, da providencial "linha de vida", como é chamado o rio Colorado.
          No Brasil temos o chamado "rio da união", o São Francisco, do qual depende a vida de todo Nordeste. Não fosse esse grande canal adutor natural, que providencialmente não se dirige para o mar, no litoral do Espírito Santo, mas segue para o norte até as regiões mais áridas do País, e certamente jamais poderíamos pensar em valorizar o imenso sertão nordestino. Esse rio existe, é uma realidade a nossa disposição, faltando apenas identificá-lo também como "linha da vida" de 35 milhões de brasileiros. Com uma diferença significativa, que deveria tocar os nossos brios: enquanto o Colorado contribui para múltiplas finalidades com uma vazão anual de 13 quilômetros cúbicos, o São Francisco está à espera de que criemos juízo para aproveitar os seus cem quilômetros cúbicos de vazão por ano.
As bacias de drenagem de ambos esses rios praticamente se equivalem: cerca de 640 mil quilômetros quadrados as terras do Colorado são quase todas semi-áridas, com grandes extensões desérticas, as terras do São Francisco são semi-áridas, com manchas de solo excelente. Ao sol do deserto californiano a temperatura sobe a 55 graus, no nosso Nordeste não passa de 45. A umidade relativa do ar é a mesma: 30%. Mas, o São Francisco carreia somente 10% dos sedimentos sólidos arrastados pelo Colorado.
          Apesar de tudo isso, o vale do rio Colorado é hoje uma das mais prósperas regiões dos Estados Unidos, onde se desenvolvem grandes projetos de irrigação, como Palo Verde (40 mil hectares), Imperial Valey (350 mil hectares) e o imenso Salt River Project (140 mil hectares), além de outros que elevam a área cultivada em solos áridos e milhões de hectares, ao passo que em todo o vale do rio São Francisco mal alcançamos os 20 mil hectares irrigados. Em toda a Califórnia há 4,5 milhões de hectares irrigados.
          Quais seriam as razões dessa vergonhosa discrepância?
          A principal delas, certamente, é uma brutal diferença de estruturas políticas e administrativas, com o governo norte-americano atuando apenas supletivamente na valorização das regiões áridas, porque nos Estados Unidos as decisões são tomadas efetivamente pelos cidadãos e pelos seus representantes no Congresso, tendo sempre em mente que é o contribuinte quem acaba pagando, de uma forma ou de outra, os investimentos feitos pelo governo. No Brasil, muito particularmente no Nordeste, prevalece a paternalismo oficilal, o clientelismo dos políticos nos bancos governamentais, a troca de favores, com o poder absoluto de decisão concentrado na cúpula, em Brasília, e a obediência cega espalhada por uma massa de 35 milhões de nordestinos, para os quais o governo tudo faz e tudo deve, inclusive multiplicar-se em dezenas de repartições, com dezenas de milhares de funcionários públicos, todos preocupados em conversar a sinecura ao mesmo tempo em que justificam a própria ociosidade com lamentações e críticas pelos baixos salários que recebem.
          Seria, então, o Nordeste inviável?
          Para o diretor do Departamento Nacional de Obras e Saneamento, José Reinaldo Carneiro Tavares, a solução é justamente realizar as mudanças administrativas e fundiárias que o governo já estudou e consubstanciou no Projeto Nordeste, ao mesmo tempo em que se deve motivar a opinião pública de todo o País em favor de solução dos problemas nordestinos, da mesma forma que se fez em favor de outros grandes projetos nacionais, como por exemplo Itaipú,onde a coletividade brasileira investiu 15 bilhões de dólares. "Com a terça parte dessa quantia poderíamos não só concluir muitoa projetos de irrigação existentes ao longo do rio São Francisco, mas também levar avante o projeto de transposição das águas deste rio para os Estados tão pouco dotados de recursos hídricos, que são o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba. A possibilidade de realizar essa obra está evidente em tudo quanto estamos vendo na Califórnia. O problema é apenas de gerenciamento adequado dos recursos hídricos, para que se obtenha o rendimento máximo em benefício da sociedade".
          É a mesma opinião o presidente da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, Erasmo José de Alameida, para quem a "transposição tem causado muita polêmica sem razão alguma, pois a comunidade técnica está melhor para o País e para a região nordestina, sem sacrificar este ou aquele setor. As obras do Bureau of Reclamation são uma demonstração viva de que poderemos chegar aos melhores resultados quanto ao uso das águas do Rio São Francisco".
          O presidente da Companhia Hidroelétrica do São Francisco, Rubens Vaz Costa, é mais cauteloso ap apreciar a conveniência de retirar 300 metros cúbicos por segundo do rio São Francisco para enviar para outras bacias, " pois essa água equivale a uma usina de mil megawatte e nossa obrigação é zelar para que todo o sistema gerador planejado a juzante de Sobradinho possa ser aproveitado em benefício do Nordeste". Costa inclina-se pela utilização nos projetos de transposição de bacias da água vertida, isto é, do volume que passa anualmente pelos vertedouros e perde-se no mar. " Construindo barragens nas cabeceiras dos afluentes do rio São Francisco podemos reter essa água, que chega a 16 bilhões de metros cúbicos. Depois de concluídas essas obras, então poderemos nos voltar com tranqüilidade para as obras de transposição, pois os 300 metros cúbicos por segundo constantes do projeto exigem dez bilhões de metros cúbicos por ano".
          Para o secretário geral do Ministério da Fazenda, Mailson Ferreira Nobrega, "investimento é poupança, portanto investir em bons projetos é assegurar uma boa poupança. Não é à custa de bons projetos de crédito que conseguiremos beneficiar o Nordeste, mas sim através de bons projetos de obras". Antes de mais nada - prossegue Mailson - é preciso saber se a Nação dispõe de poupança para realizar determinada obra, para em seguida saber se a coletividade está disposta a realizar sacrifícios para pagar aquela determinada obra. Guardo duas impressões marcantes desta viagem à Califórnia e ao Arizona: a primeira é a de que há uma forte interação entre comunidade e governo para realização dos projetos de irrigação. Há debates, conflitos, mas acima disso tudo chega-se a uma decisão séria, que justifica o financiamento do projeto, dividido entre governo e setor privado. A outra impressão está relacionada com a forma inteligente de tomar as decisões e de aplicr recursos públicos. Em vez de dispersá-los em crédito subsidiado, aqui esses recursos públicos são concentrados em projetos de investimento de longa maturação, de até 50 anos, nos quais o setor privado não tem condições de atuar. Há uma nítida fronteira entre o que cabe ao governo fazer e ao setor privado realizar. No Brasil, primeiro o governo assume grande parte do incentivo agrícola, depois, não conseguindo alcançar seus objetivos, exerce uma brutal intervenção, seja no crédito, seja na produção. Isso ocorre nas áreas irrigadas do Nordeste, quando o crédito oficial deveria deste, quando o crédito oficial deveria ser mero coadjuvante, justificando-se somente para os seguintes casos: projetos de investimento de longa maturação; amparo ao pequeno produtor; formação de estoques reguladores de preços; política inteligente de garantia de preços mínimos ao produtor. Quanto à tese de transposição das águas do rio São Francisco, Mailson disse que "precisamos ter uma dose de humildade e reconhecer a falta de debate em torno dessa idéia , para que se evite uma decisão centralizada. Não podemos nunca esquecer que os recursos alcançados pelo governo para o crédito oficial são arrancados da sociedade, sob a forma de tributos explícitos ou de cobranças implícitas, que constituem a emissão de moeda que alimenta a inflação".

Início da Página                                          O Estado de São Paulo, 12 de julho de 1984 - pág. 10