FADIGA E ARROGÂNCIA

 


Somos filhos de três raças: brancos, negros e índios, que, combinados dois a dois, se tornaram mulatos (brancos com negros), caboclos (brancos com índios), cafuzos (índios com negros) e mamelucos (brancos com caboclos). São povos tristes.
Hoje, somos divididos em três grupos:
1) as elites modernizantes, que vivem a sensação de dever cumprido quando falam nos telefones celulares. E temem por suas conquistas quando falta luz, água e transporte. Votam no PSDB. Eram alegres, ficaram tristes;
2) as elites de ex-revolucionários que esperam novo modelo depois do fim da União Soviética e defendem, enquanto esperam, uma regra invertida: a ética na política, em vez de uma política que refaça a ética. Votam no PT. São alegres, mas estão tristes;
3) as massas distraídas pela televisão, pelos escândalos e, na semana passada, com o Carnaval. Durante o ano vivem a angústia existencial de uma escolha trágica -ou se convertem a uma religião que promete a bem aventurança dos pobres, pois ficarão ricos, ou aderem ao crime organizado. Votam em candidatos histriônicos ou em mitos criados por publicitários. São tristes, mas parecem alegres.
O dinheiro atemoriza os dois primeiros grupos quando assumem o governo -ex-revolucionários, treinados em "realpolitik", viram monetaristas, tão convictos quanto os modernizantes. Tornam-se arrogantes.
Arrogância é considerar o próprio julgamento como definitivo e natural. O arrogante expressa seu juízo por meio de oração subordinada. "O país tem grandes carências de investimentos em infra-estrutura, educação e habitação, mas não tem dinheiro. Os juros são muito altos por causa da corrupção." A oração subordinada transforma o juízo particular em universal.
Se a oração principal fosse "o país não tem dinheiro", seria provocativa. O país gasta 9% do PIB com o pagamento de juros, imprime dinheiro para pagar juros e não tem dinheiro. O que é corrupção?
O país está fatigado. Fadiga é o convívio com o infinito, com o que nunca acaba, fim que nunca chega ao fim, o irritante assovio do pneu que se esvazia lentamente. Imaginava-se que, depois da cobrança de aposentadoria dos aposentados, a agenda neoliberal se esgotaria, por falta de assunto. Que o país poderia ser salvo sem revolução, sem novo modelo, sem reformas e com medidas simples: reduzir os juros e gastar o dinheiro público economizado com juros menores em estradas (o país vai parar), urbanização de favelas (as grandes cidades são grandes favelas que hospedam o crime organizado), melhorar a qualidade da universidade pública (que forma a elite de governantes e espanta os fantasmas que os assustam).
"Fadiga é vitalidade desesperada." O país perde o fôlego e não sufoca, pois a redenção sempre está próxima. Desespera-se com o anúncio de promessas inócuas e difíceis de cumprir -a "política econômica não muda", o país "não tem dinheiro", "vamos fazer a reforma política", a "reforma do Judiciário" e, logo mais, outra reforma da Previdência.
O Carnaval foi deprimente. Cinco dias cinzas de chuva fina sobre a cidade vazia. Estavam todos na avenida. Os mitos -as reformas, a modernidade e o dinheiro- foram os destaques criados pelas elites modernizantes; desfilaram nus para parecer reais; os carros alegóricos e fantasias foram pagos ou por empresas que querem publicidade ou pelo crime organizado -que não quer publicidade; sambas-enredo trataram de temas irrelevantes. A massa de pessoas reais seguia atrás, fantasiada de coisas que não existem, corpos suados, levantando os braços, cheia de vitalidade, desesperada, mas distraída com o Carnaval.



João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.

 



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