A
cada dia, e em geral mais de uma vez por dia, Luiz Inácio Lula
da Silva confirma o seu talento de orador, com domínio de diferentes
auditórios e afiada presença de espírito. Se dedicasse
ao trabalho de governar, com a atenção meticulosa requerida
por cada pasta, uma parte do tempo e da energia dedicados ao discursar
pelo país afora, é provável que seu governo mostrasse
mais coragem do que os "muitos presidentes" por ele agora
acusados de covardia.
Não ficou claro, na indignação de Lula um tanto
teatral, o que temeram os tais presidentes que "não tiveram
coragem de fazer" as "coisas que precisam ser feitas".
Falta mesmo algum sentido à acusação, porque Lula
discursava sobre a miséria nordestina e, por certo, os presidentes
que nada fizeram pelo Nordeste não foram omissos por medo, mas
por outros motivos bem mais consistentes. Nada disso, porém,
enfraqueceu a repercussão do discurso, à qual não
faltaria a contribuição de Fernando Henrique Cardoso,
sempre pronto a cair em todas. Mas o objetivo de Lula, que foi a comparação
implícita entre certos valores do seu e de governos precedentes,
não resiste nem à rápida apreciação.
Que governo se demonstrou mais condicionado pelo temor do que o atual?
Fernando Henrique, primeiro alvo do discurso de Lula, pôs o seu
governo a serviço do sistema financeiro e de interesses internacionais
por convicção, entusiasmado com o neoliberalismo que o
fez imaginar-se uma das futuras lideranças mundiais. O governo
Lula faz a mesma coisa por temor de não ser aceito pelo "mercado",
nome generosamente dado pelo jornalismo fernandista ao sistema financeiro
e suas ramificações internas e externas. O temor do governo
Lula, é verdade, não chega a ser absoluto. Não
há temor aos aposentados, aos servidores públicos e aos
assalariados, cuja capacidade de defesa, já pequena desde sempre,
foi desmantelada pelos oito anos anti-sociais de Fernando Henrique.
Nem teme os políticos, para os quais o governo dispõe
de meios de submissão eficientes.
A crítica de Fernando Henrique a Lula tem fundamento, quando
diz que o governo atual, sob muitos aspectos, é mais conservador
que o seu. Poderia até dizer mais retrógrado. Que ousadia
positiva teve, até agora, o governo Lula? Mas ousadias negativas,
inclusive anti-sociais, leva-as aonde seu antecessor não teve
coragem -ainda sim, coragem- de chegar: a "reforma" da Previdência,
com a redução de aposentadorias já indignas; a
liberação (ilegal) da soja transgênica; o truque
para cortar em mais R$ 3,5 bilhões as verbas da saúde
determinadas pela Constituição; a redução
de investimentos a ponto de torná-los inferiores até ao
gasto com passagens e diárias da Presidência e da cúpula
ministerial, e por aí.
Vale a pena, porém, uma referência mais: por decisão
sua, o governo Lula aumentou em 35% o gasto com pagamento de juros,
que, neste ano, prevê o Banco Central, devem chegar a R$ 154 bilhões.
Ou cerca de cinco vezes a verba (a liberação é
outro problema) para a saúde. A diferença entre o gasto
com juros no ano passado e em 2003 já é, sozinha, 30%
maior do que a verba para a saúde neste ano. É melhor
nem comparar os gastos com juros e com outras atividades essenciais
além da saúde.
Diz-se que o Brasil está estagnado. Não, está regredindo
mais. Se Fernando Henrique agiu por convicção, só
os muitos ingênuos, se ainda existem exemplares dessa espécie
encantadora, acreditariam que Lula e o seu time reconsideraram, em três
ou quatro meses do ano passado e sem fatos indutores, tudo o que pensaram,
disseram e fizeram nos últimos 20 anos, pelo menos. Em vez de
discurso sobre a covardia alheia, a Lula mais conviria fazer, em silêncio
embora, a crítica do seu governo. Até para não
voltar atrás, tão depressa e mais uma vez, como acaba
de fazer.
Mais do mesmo
Foi com a imagem de alta competência e firmeza granítica
que Dilma Roussef chegou ao Ministério das Minas e Energia. Seus
saberes, no entanto, ainda não se mostraram, e a firmeza menos
ainda. O setor de Dilma Roussef está em estado de calamidade:
serviços indecentes e custo compulsório, para o consumidor,
cada vez mais alto e sem justificativa alguma.
Há muito pouco tempo, Dilma Roussef negou qualquer risco de falta
de energia elétrica. De repente, sabe-se da necessidade de comprar
energia elétrica da Argentina para abastecer o Sul brasileiro
-ao dobro do preço da energia produzida aqui. No Sudeste, a Light
decide comprar energia de uma fornecedora privada/estrangeira, em vez
da energia de Furnas, e por isso os seus consumidores compulsórios
terão que pagar quatro vezes o preço atual.
O recurso de culpar por tudo a Aneel, Agência Nacional de Energia
Elétrica, é fácil e frágil. Em dez meses,
o governo teve muito tempo para providenciar as correções
indispensáveis nas marotices da privatização. Não
o fez ou por inépcia ou por covardia.
O apagão em Florianópolis foi apenas, digamos, mais visível.
A péssima qualidade dos serviços caríssimos está,
porém, em toda parte. A elaboração deste texto,
por exemplo, foi repentinamente interrompida por longo período:
falta de energia. Nada de anormal em meu bairro carioca: entre terça
e sexta-feira era a quarta vez que ocorria. Se o corte incide, desde
a privatização, na mesma área, é óbvio
tratar-se de falta de manutenção. Claro, a Light passou
a economizar em mão-de-obra. E o Ministério das Minas
e Energia e a Aneel economizam em cumprimento de suas responsabilidades.
Só os consumidores, sem alternativa, fazem a sua parte: sujeitam-se
à exploração impune.
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