O SUCATEAMENTO DA CIÊNCIA BRASILEIRA

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

"Solicito que toda vez que algum servidor receber convite para emitir opiniões, julgamentos ou comentários acerca dos nossos programas e metas de trabalho, seja antecipadamente consultado o
secretário da respectiva área (...) Havendo necessidade de realizar reuniões com a presença de outros órgãos do governo, deverá ser dado conhecimento prévio ao secretário da área visando obter sua
anuência." Não vem essa ordem "cala-a-boca" do SNI do general Médici nem de algum chefete da Gestapo. Vem essa mordaça de um secretário-executivo da atual administração federal. E justamente
de uma área em que a busca da verdade e a transparência deveriam ser os valores dominantes, a saber, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Também é neste governo ético, democrático e transparente que, pela primeira vez, membros de alto escalão do MCT, inclusive o acima referido secretário-executivo, têm feito com que sejam mantidas suas bolsas de pesquisas após empossados. O ministério oferece complementações salariais, denominadas bolsas, para pesquisadores em atividade. Quem julga e concede as bolsas são comissões de pares. A manutenção dessas bolsas pelos executivos do ministério fere pelo menos dois princípios morais básicos:
Em primeiro lugar, há um óbvio constrangimento para uma comissão que tem de julgar superiores hierárquicos; Em segundo lugar, quebra-se um princípio fundamental, o de que as bolsas são concedidas exclusivamente a atividades de pesquisa -o que, obviamente, não estão realizando os executivos do MCT. Esse abuso foi ampliado com a exigência de que bolsas fossem dadas,
sem o respeito às avaliações de mérito tradicionais, à esposa de um e à filha de outro desses "altos" administradores. Tudo isso só serve para demonstrar a atitude oportunista e a percepção apoucada da atual administração do MCT. Vamos aos fatos realmente relevantes:
1. Foram jogadas no lixo as avaliações dos institutos de pesquisa do MCT, o chamado Relatório Tundisi. Não porque esse relatório tenha falhas, mas simplesmente por princípio. Avaliações são
desconfortáveis para os medíocres e os parasitas. E, se houve um incontestável progresso em algum setor de atuação do MCT da segunda administração FHC, foi a adoção de procedimentos de
avaliação e de comitês de busca independentes do ministro e da corporação interna para a escolha dos dirigentes de suas unidades de pesquisa;
2. Outro retrocesso institucional é o abandono de uma progressiva adoção da fórmula gerencial denominada organização social, que se mostrou extremamente eficaz para o setor de ciência e tecnologia.
É compreensível que alguns pesquisadores prefiram a condição de servidor público. Mas, quando o administrador favorece a opção pelo pesquisador-funcionário público, temos o direito de desconfiar
de populismo;

3. Foi suprimida a Secretaria de Política de Informática, área de produção industrial à qual foram concedidos expressivos subsídios e que necessita permanentemente de regulamentação e controle, pois é um campo em que a evolução tecnológica produz novas aplicações a cada dia. É claro que o empresário do setor prefere agir sem restrição e deve estar exultante;
4. Outra secretaria extinta foi a que se ocupava das unidades de pesquisa, ou seja, da Comissão Nacional de Energia Nuclear, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, das organizações sociais
e dos institutos; ao todo quase 20 instituições. Essa hipercentralização só pode servir ao caos e ao casuísmo;
5. Não tiveram coragem de extinguir completamente o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, mas reduziram, ilegalmente, seu orçamento a 7% do que fora orçado e aprovado no Congresso
Nacional. Esse órgão tinha como missão a realização de estudos que permitissem ao MCT elaborar suas políticas e se informar para tomadas de decisão, o que se tornara imprescindível com a criação
dos fundos setoriais, que constituem o principal apoio financeiro à pesquisa aplicada no Brasil. Com a eliminação em futuro próximo do centro, as decisões virão a ser tomadas sem apoio técnico, o que,
desconfiamos, será bastante conveniente para atuação política;
6. Enquanto em países desenvolvidos a pesquisa em nanotecnologia já absorve cerca de US$ 5 bilhões por ano, o Brasil dá o seu primeiro e hesitante passo reservando R$ 8 milhões para iniciar um
instituto especializado nesse campo. A expectativa é que a revolução nanotecnológica vá gerar um mercado de US$ 1 trilhão por ano já na próxima década. Pois bem, o projeto de elaboração de
um Programa Nacional de Nanotecnologia, que levou dois anos para ser elaborado, teve seu orçamento zerado, apesar de aprovado no Congresso Nacional e sancionado pela Presidência.
O objetivo principal desse programa era possibilitar ao país conquistar para suas empresas uma fatia significativa do mercado mundial que se projeta para a nanotecnologia, em linha com uma política de aumento do conteúdo tecnológico e do valor da pauta de exportações dos produtos brasileiros. A decisão de zerar esse projeto baseou-se na desculpa de que será criada uma "rede" de nanotecnologia. Ora, qualquer iniciado sabe que sem um centro de coordenação, uma concentração mínima, uma massa crítica, não há possibilidade de sucesso em atividades de pesquisa e desenvolvimento em áreas sujeitas à intensa competição internacional. Redes de organismos independentes de pequeno porte, espalhadas democraticamente pelo Brasil, só conseguiriam uma atuação eficiente se ancoradas em uma instituição com massa crítica. É preciso primeiro criá-la e, então, atrelar a ela as redes. A solução proposta serve, porém, aos propósitos populistas do MCT, pois o dinheiro assim distribuído fará muita gente modesta satisfeita. Pois bem, o MCT, desde sua criação, nunca fora objeto de troca no tabuleiro da política partidária. É lastimável que justamente na ascensão do PT, que tanto alardeia sua convicção de que o conhecimento é a base do desenvolvimento econômico, torne-se o Ministério da Ciência e Tecnologia palco de populismo desagregador e do mais retrógrado jogo politiqueiro.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.



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