O PASSADO COMO LIÇÃO PARA O PRESENTE

Luiz Carlos Mendonça de Barros

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Volto a um tema que tem sido recorrente neste meu espaço semanal de reflexão: o conhecimento da história, não como registro cronológico de acontecimentos passados, mas como fonte riquíssima de entendimento dos acontecimentos sociais. A inflação elevada e persistente dos dias de hoje me leva a insistir novamente nesse tema. Os principais indicadores que medem o ritmo de aumentos de preços na economia mostram um quadro muito complexo e difícil para a ação do governo Lula. Para o analista que não tem a felicidade de acreditar na chamada teoria monetarista, os dias que estamos vivendo são muito ricos e desafiadores. Entender a inflação que nos incomoda exige um esforço intelectual muito grande. Um verdadeiro teste de capacitação profissional.

Nestes tempos bicudos do início do governo Lula, acreditar que a inflação é um fenômeno criado apenas pelo excesso de moeda que circula na economia é uma fonte de tranquilidade para o analista. Ser monetarista é dormir tranquilo o sono dos justos, por não ter dúvidas sobre como combater a inflação. Para esses verdadeiros monges trapistas do pensamento econômico, a inflação está de volta porque o Banco Central de Armínio Fraga foi frouxo no controle monetário e covarde para promover um verdadeiro choque de juros na economia. Para retomar seu controle, o governo Lula deveria aumentar agressivamente a taxa Selic. E correr depois de alguns meses para o abraço da torcida! Como eu não acredito nessa muleta psicológica de alguns colegas de profissão, vou voltar um pouco no tempo e buscar, no apagar das luzes do regime militar, alguns ensinamentos importantes.

Em 1983, o Brasil foi atingido por uma crise de confiança, semelhante à que vivemos hoje, criada pela moratória do México. O czar da economia de então, o deputado Delfim Netto, foi obrigado a desvalorizar a moeda e provocar uma inversão radical no sinal de nosso comércio exterior. A busca de um superávit expressivo, via aumento das exportações e redução das importações, era então a única forma disponível para financiar o déficit em nossa balança de pagamentos.

Delfim Netto, economista preparado que é, sabia que essa mudança nos objetivos da política econômica iria gerar uma pressão inflacionária adicional. Sua causa não seria a questão monetária, mas o choque de oferta que o aumento das exportações e a redução das importações iriam criar no mercado interno. Para enfrentar essa situação, seria necessário provocar uma redução do consumo dos brasileiros via aumento do desemprego e uma queda dos salários reais. Ao mesmo tempo, deveria ocorrer um aumento da proporção da renda que os brasileiros poupavam.

Duas questões centrais emergiam dessa leitura, de natureza keynesiana, da conjuntura econômica de então: a intensidade da recessão necessária para reequilibrar oferta e demanda de bens no mercado interno e o tempo necessário para controlar o choque inflacionário em razão das velocidades diferentes com que ocorrem o aumento do saldo comercial e o ajuste de renda da sociedade. Esse período é conhecido na literatura econômica como estagflação.

Hoje, vivemos uma situação semelhante. A crise de confiança que nos atingiu a partir da quebra da Argentina gerou, como em 1983, uma redução impressionante de nossa capacidade de financiar nosso déficit em moeda forte. Não havia outra saída senão repetir Delfim Netto. Fizemos isso com uma velocidade e intensidade extraordinárias. Nos últimos seis meses, nossa conta corrente com o exterior saiu da posição altamente deficitária para uma situação de equilíbrio. Evitamos com isso uma crise de liquidez e solvência, mas atiçamos de forma estrutural o adormecido dragão da inflação. Exatamente como ocorreu em 1983.

Faltou então ao Banco Central, com sua cultura monetarista extremada, a humildade para aceitar as dificuldades inerentes a esse processo de ajuste. Continuou a insistir em metas de inflação inexequíveis e manteve seu discurso autista, se esquecendo do que acontecia no lado real da economia.

A nova direção do Banco Central repete quase os mesmos erros da era FHC. Embora tenha adoçado com o açúcar rosa do petismo da paz e amor o sistema de metas de inflação, não teve a coragem de reconhecer a natureza e as dificuldades do processo inflacionário de hoje. Continua operando a caixa-preta monetarista que herdou do governo anterior e, com isso, permanece presa à armadilha do sistema de metas de inflação.

Desse mal-entendido deriva essa sensação de desconforto que a divulgação de novos índices inflacionários cria no mercado financeiro. Vivemos no dia em que escrevo esta coluna um momento como esse. O dólar sobe nos mercados, e a demanda por um novo aumento dos juros ganha corações e mentes dos principais agentes econômicos. Para manter sua credibilidade, o Copom, em sua próxima reunião, vai ter de continuar a elevar os juros domésticos.

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Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC). Internet: www.primeiraleitura.com.br

 Folha de São Paulo, 07 de fevereiro de 2003, p. B2.



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