MODELO EM AGONIA

 

José Roberto Mendonça de Barros
Mônica Baer

No primeiro ano do atual governo, o êxito da equipe econômica na condução da política macroeconômica baseou-se na assunção da disciplina monetária e fiscal. De fato, a conjuntura de curto prazo melhorou e voltamos, praticamente, ao estágio no qual o país se encontrava no período anterior à campanha presidencial: controle, no curto prazo, das variáveis macroeconômicas básicas, mas sem clareza de como alcançar uma trajetória de crescimento e desenvolvimento sustentado. Uma única diferença positiva importante marcou 2003: a aprovação da reforma da Previdência do setor público, que previne, no curto prazo, parte da potencial deterioração das contas públicas.
O otimismo de agentes financeiros, em alguns períodos beirando a irracionalidade, deriva do fato de que o risco de caos não se concretizou, a performance da balança comercial superou em muito as expectativas até mais otimistas e o cenário internacional, apesar de grandes dúvidas quanto aos fundamentos e o imponderável, apresenta boas perspectivas para 2004. É, sem dúvida, um trunfo a economia não ter se descontrolado. Entretanto esse êxito não resolve os desafios que já estavam postos antes da transição política. O ajuste fiscal, perseguido desde 1998, baseia-se essencialmente no aumento da carga tributária e mostra claros sinais de esgotamento. E há riscos de o governo persistir nessa estratégia, o que é preocupante se os objetivos forem crescimento e desenvolvimento.
Nossa estimativa preliminar de arrecadação tributária bruta em 2003, incluindo União, Estados e municípios, chega a R$ 543 bilhões, um aumento nominal de 14,6% sobre o ano anterior. A variação real do PIB foi negativa em 0,2%. A inflação foi de 9,3% no ano. Porém, como o deflator implícito do PIB será em torno de 14% (inflação média em 2003), a carga tributária pode ficar próxima da estabilidade.
O ano de 2004 inicia-se com várias medidas aprovadas que apontam novo aumento da carga: majoração significativa da alíquota da Cofins; impacto pleno das mudanças do ISS de 2003; aumento da CSLL; contribuição dos servidores públicos inativos; não-correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física; e PIS e Cofins sobre produtos importados. Com base em nossas premissas de crescimento de 3% a 3,5% e inflação de 6%, a carga tributária em 2004 pode ter um aumento de pelo menos 0,8 ponto percentual do PIB. Trata-se de uma carga acima de 36% do PIB, sem que se vislumbre nenhuma melhora na estrutura de gastos.
Exceto o passo à frente na Previdência pública, a mera contenção de gastos por anos a fio implica que, em algum momento, a pressão política se torna insuportável e acabam apropriando-se de recursos aqueles que têm mais força de pressão, o que não necessariamente é o melhor critério ordenador dos gastos públicos. Além disso, o corte de gastos se concentra nos investimentos.
Ainda que se suponha que o Estado passe a ter um crescente papel regulador e opere menos como empreendedor direto, um volume mínimo de investimentos continuará sempre a seu cargo. Mesmo esse montante vem sendo comprometido, o que explica, em parte, a precária situação da infra-estrutura econômica e social do país.
Assim, em face de pressões crescentes de gastos, quando a política fiscal se limita à gestão de caixa, a tendência é resolver o problema de escassez de recursos via aumento de tributos. Mas essa trajetória tem conseqüências econômicas negativas não-triviais. Primeiro, nesse momento, através da majoração da alíquota da Cofins e da ampliação da base de incidência do ISS, promove-se um forte ajuste no setor de serviços, com impactos negativos sobre o emprego e a renda. Segundo, o aumento da carga tributária, mais um contínuo processo de recuperação de tarifas de serviços públicos, vem tirando renda disponível para gasto. Terceiro, quanto maior a carga e pior a sua distribuição, maior o incentivo à sonegação. Finalmente, quanto maior a carga, sem contrapartida na melhora de serviços, menor é o estímulo ao investimento privado.
Não há saída fácil desse modelo no curto prazo, mas é imprescindível que se contenha seu aprofundamento e se comece a construir um modelo fiscal alternativo, que seja sustentável no médio e longo prazo. Sua discussão não prescinde de clareza quanto ao papel do Estado, suas funções, como financiá-las e exercê-las de maneira mais efetiva. Assim, regulação, reforma tributária e previdenciária, estrutura de gastos e políticas sociais precisam ter um mínimo eixo condutor e coerência.
Da forma como o debate vem ocorrendo, uns guiando-se somente por preceitos financeiros e outros operando focados estritamente no resultado político, dificilmente se encontrará uma saída de construção positiva. Nesse contexto, aumenta o risco de se persistir no atual modelo fiscal, que mostra sinais evidentes de exaustão.


José Roberto Mendonça de Barros, 59, é professor aposentado da Faculdade de Economia e Administração da USP e sócio-diretor da MB Associados. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1995-98).
Monica Baer
, 49, doutora em economia pela Unicamp e ex-professora do Instituto de Economia da universidade, é economista da MB Associados.

 



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