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OMC (Organização Mundial do Comércio) está
doente e, embora o estado do paciente não seja grave, inspira
muitos cuidados. Essa metáfora surgiu, uma e outra vez, durante
a reunião de
quarta-feira passada do mais importante comitê da instituição
que cuida do comércio global (o de Negociações
Comerciais). Dois dias antes, vencera o prazo para que os 145 países-membros
da OMC chegassem a um acordo sobre as "modalidades" da negociação
a respeito de agricultura.
"Modalidades", no jargão comercial, significa estabelecer
o objetivo das negociações, a metodologia a ser seguida
e o resultado final esperado. É, na prática, uma pré-negociação.
Se não há acordo na pré-negociação,
fica obviamente muito mais difícil um entendimento na hora de
negociar a liberalização agrícola propriamente
dita. Entende-se porque, então, os próprios delegados
presentes na quarta-feira ao casarão à beira do lago Leman,
em Genebra, que é a sede da OMC, falavam, ao mesmo tempo, em
doença, mas faziam questão de dizer que não era
-ainda- grave.
Negociações difíceis
"A negociação agrícola sempre se resolve nos
momentos finais", afirma, por exemplo, Mário Marconini,
diretor-executivo do Cebri (Centro Brasileiro de Relações
Internacionais). Reforça Robert Zoellick, uma espécie
de ministro do Comércio Exterior norte-americano: "Dado
que 145 economias estão envolvidas, os interesses em jogo e a
diversidade de nível de desenvolvimento dos participantes, a
única certeza sobre essas negociações globais é
que não serão simples ou fáceis". Completa
Gary Hufbauer, especialista em comércio do IIE (Instituto para
a Economia Internacional, uma das principais instituições
de pesquisa econômica dos Estados Unidos): "Lembre-se que
a Rodada Uruguai entrou em colapso duas ou três vezes por causa
da agricultura, mas finalmente foi concluída". Hufbauer
está se referindo ao ciclo de liberalização comercial
batizado de Rodada Uruguai, que durou de 1986 a 1994, e antecedeu a
presente rodada, chamada Agenda Doha de Desenvolvimento, lançada
em 2001.
Estado crítico
Mas Hufbauer acrescenta uma frase que ajuda a entender porque, embora
a "doente" OMC não esteja em estado crítico,
inspira cuidados: "A Rodada Uruguai terminou com muito pouca liberalização
agrícola de fato". Aí é que a "doença"
pode levar o paciente ao estado de coma: os países que são
grandes exportadores agrícola, entre eles o Brasil, já
não aceitam que a liberalização agrícola
seja mínima. Os Estados Unidos, por exemplo, falam sobre o tema
com a mesma ênfase que puseram na ofensiva contra o Iraque. "Não
devemos aceitar mudanças insignificantes no comércio agrícola
global. Esta é uma oportunidade única para fazer alterações
significativas no sistema comercial global", diz nota oficial divulgada
por Zoellick e pela secretária da Agricultura, Ann Veneman, a
propósito do prazo perdido.
Mais prazos
Se agricultura já é uma complicação, o problema
só aumenta de tamanho quando se lembra que dois outros prazos,
também determinados pela Conferência Ministerial de Doha,
foram igualmente perdidos pela OMC. O primeiro, terminado a 31 de dezembro
passado, diz respeito ao que o jargão da OMC chama de "implementação"
(de decisões anteriores, que, no entanto, dependiam de esclarecimentos).
Abrange maior liberalização do comércio de têxteis,
tratamento especial para os países mais pobres, subsídios
e medidas compensatórias, limitações ao emprego
do antidumping (retaliações por exportações
a preços de custo ou abaixo do custo, que caracterizam o dumping).
O segundo prazo vencido era para fechar brechas em um acordo para aperfeiçoar
o acesso de países pobres a remédios mais baratos (os
genéricos). Havia acordo entre todos, mas os Estados Unidos vetaram.
"São três temas (incluindo agricultura) que nos interessam
diretamente", reclama o chanceler brasileiro Celso Amorim. "São
sintomas ruins", reforça avaliação obtida
pela Folha entre quadros técnicos da Organização
Mundial do Comércio em Genebra. Reconhecida a doença e
o potencial para que ela se agrave eventualmente, que remédio
haveria para evitar maiores males? "Trade-off", em inglês,
ou "barganha" em bom português, sugerem especialistas,
entre os quais o próprio diretor-geral da OMC, o tailandês
Supachai Panitchpakdi.
Acordo
completo
Em artigo para o jornal "The International Herald Tribune",
na última quarta-feira, Panitchpakdi escreveu que "todas
as áreas de negociação estão vinculadas,
e não há acordo em qualquer segmento até que haja
acordo em todos. Isso facilita "trade-offs", de forma que
governos que estejam relutantes em derrubar barreiras às importações
em um setor podem ficar mais predispostos a um acordo se são
oferecidas oportunidades para seus exportadores em outro setor".
No fundo, o que o diretor-geral da OMC está querendo dizer é
que, se a União Européia (geralmente tida como a vilã
no capítulo
agrícola) obtiver concessões em temas que ela insistiu
para que figurassem na agenda Doha, pode amolecer em agricultura. É
uma hipótese, mas ela apenas conduz a um círculo de ferro,
a julgar pela avaliação dos peritos da própria
OMC obtida pela Folha: "É bem possível que os países
em desenvolvimento não queiram fazer acordo sobre as áreas
de interesse da União Européia, se não tiverem
uma indicação clara do que podem esperar em agricultura".
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