EUA ADMITEM REVER SUBSÍDIOS AGRÍCOLAS
Representante comercial americano diz que lei pode ser alterada se avançarem as negociações da OMC


O representante comercial norte-americano, Robert Zoellick, tentou ontem aplacar a ira da comunidade internacional ao projeto de lei norte-americano que prevê subsídios adicionais de US$ 40,6 bilhões e eleva para mais de US$ 100 bilhões os subsídios aos produtores rurais do país.
A nova lei agrícola dos EUA (a "farm bill") já foi aprovada pela Câmara e está pronta para ser votada no Senado norte-americano. O presidente George W. Bush, que inicialmente opunha-se a proteções adicionais ao setor rural norte-americano, mudou de idéia e já divulgou que irá sancioná-la.
Apesar dos subsídios da nova "farm bill", Zoellick declarou ontem que os EUA estão comprometidos a reduzir a proteção aos produtores, caso um novo acordo no âmbito da OMC (Organização Mundial de Comércio) reduza os tetos de subsídios agrícolas. Esse compromisso foi incluído no final do texto do projeto de lei agrícola. "Isso prova o compromisso dos EUA com a liberalização comercial", afirmou Zoellick.
Falando a uma platéia de empresários com atividades na América Latina, o representante comercial também fez vários elogios ao governo brasileiro, em especial ao ministro Celso Lafer (Relações Exteriores), a quem Zoellick agradeceu por tê-lo ajudado durante as negociações em Doha (no Catar) que lançaram a atual rodada mundial de comércio.

Boa vizinhança
Zoellick disse que o bom diálogo que existe hoje entre os governos do Brasil e dos EUA permite otimismo com relação à formação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
"No final deste ano, o Brasil e os EUA irão co-presidir as negociações da Alca", afirmou. "Se o próximo governo no Brasil mantiver a mesma boa disposição da administração de Fernando Henrique Cardoso com relação à Alca, poderemos avançar muito."
As declarações de Zoellick são feitas num momento em que o Brasil endurece com os EUA no campo comercial, ameaçando contestar na OMC a proteção norte-americana aos produtores de soja e escalando suas críticas às recentes medidas protecionistas norte-americanas.
Zoellick evitou reconhecer que as chances de aprovação da TPA ("Trade Promotion Authority ou "fast track") pelo Senado norte-americano neste ano são mínimas, algo cada vez mais aparente em Washington.
As negociações da Alca e da OMC dependem da aprovação desse projeto, que permite ao presidente Bush negociar acordos de livre comércio sem que o Congresso o desfigure depois com emendas.

"Farm bill" expõe privilégio para Estados rurais americanos

PAUL KRUGMAN


Lembram-se do quanto os representantes eleitos de Nova York tiveram de trabalhar para obter US$ 20 bilhões em assistência para a cidade vítima de ataques terroristas -assistência que já havia sido prometida? Bem, recentemente o Congresso concordou em fornecer aos agricultores norte-americanos US$ 180 bilhões em subsídios ao longo da próxima década. E, aliás, a população apenas da cidade de Nova York é cerca de duas vezes maior do que a população agrícola total dos Estados Unidos.
Eu tenho sempre sido um crítico severo do governo Bush, mas esse é um caso em que os democratas do Senado são os principais vilões.
Para seu crédito, a administração Bush inicialmente se opôs à elevação dos subsídios à agricultura, ainda que, como no caso da proteção à indústria de siderurgia norte-americana, não tenha demorado muito para que o calculismo político derrotasse os supostos princípios do governo. Mas, política à parte, talvez o fiasco do projeto de lei de agricultura nos ajude, enfim, a libertar o país de um mito nacional muito prejudicial: o de que o "coração da terra", consistindo dos Estados centrais do país, relativamente rurais, é moralmente superior a todo o resto dos Estados Unidos.
A história já foi ouvida muitas vezes: os habitantes dessa região, dizem-nos, são auto-suficientes, afeitos às durezas da vida, comprometidos para com suas famílias, enquanto os moradores das regiões costeiras são yuppies resmungões.
De fato, George W. Bush declarou que ele visita o seu cenário -digo, fazenda- em Crawford para "manter o contato com os verdadeiros norte-americanos". E aqueles de nós que vivemos no Estado de Nova Jersey somos o que, fígado picado?
Mas nem os elogios dedicados ao "coração da terra" nem as críticas às duas costas têm qualquer base na realidade.
Eu decidi realizar algumas comparações estatísticas, usando uma das definições populares para o que convencionamos chamar de "coração da terra": os chamados "Estados vermelhos" que -em uma eleição que opôs as duas costas ao centro do país- optaram por Bush de preferência a Gore. Como eles se comparam aos "Estados azuis", onde os democratas venceram?
Certamente os "vermelhos" não podem alegar superioridade quando se trata de valores familiares. De fato, eles se saem pior do que os "Estados azuis" se compararmos os indicadores de responsabilidade individual e compromisso para com a família.
Nos Estados vermelhos, a chance de que as mães sejam solteiras ou adolescentes são mais elevadas -em 1999, 33,7% dos bebês nos Estados vermelhos nasceram fora do casamento, ante 32,5% nos Estados azuis. As estatísticas nacionais de divórcio não são muito firmes, mas no geral há 60% mais divórcios, per capita, em Montana do que em Nova Jersey.
E os Estados vermelhos têm problemas especiais com o sexto mandamento [da religião cristã: "não matarás"": neles, o índice de assassinatos é de 7,4 por 100 mil habitantes, ante 6,1 nos Estados azuis e 4,1 em Nova Jersey.
Mas o que realmente choca é a alegação de que o "coração da terra" é auto-suficiente. O grotesco projeto de lei da agricultura aprovado recentemente seria prova suficiente de que essas asserções são ridículas; mas ele serve apenas para aumentar os subsídios já imensos que os Estados vermelhos recebem do restante do país.
Como grupo, os Estados vermelhos pagam consideravelmente menos em impostos do que o governo federal gasta dentro de suas fronteiras; os Estados azuis pagam consideravelmente mais. No geral, os Estados Unidos azuis subsidiam os Estados Unidos vermelhos em cerca de US$ 90 bilhões ao ano.
E dentro dos Estados vermelhos, são as áreas metropolitanas que pagam impostos, enquanto as regiões rurais recebem subsídios.
Quando estudamos os números dos Estados vermelhos, excluídas as cidades mais importantes, constatamos que eles se assemelham a Montana, o qual em 1999 recebeu US$ 1,75 em verbas federais para cada dólar pago em impostos. Os números para o Estado onde vivo, Nova Jersey, são praticamente o oposto. E, se acrescentarmos os subsídios ocultos, como provisão de água para irrigação abaixo do custo, uso quase gratuito de terras federais para pastagem e assim por diante, torna-se claro que em termos econômicos o "coração rural" dos Estados Unidos é a nossa versão do sul da Itália: uma região cujos habitantes são, em geral, sustentados por assistência de seus compatriotas mais produtivos.
Não há mistério quanto aos motivos do tratamento especial da região: ele resulta de nosso sistema eleitoral, que dá a Estados com populações pequenas -no geral, se não exclusivamente, Estados vermelhos- representação desproporcional no Senado e, em menor grau, no colégio eleitoral. De fato, metade do Senado é eleita por apenas 16% da população.
Mas, embora essas vantagens políticas brutas sejam um fato da vida, pelo menos podemos exigir o fim da hipocrisia. O coração da terra não tem nenhum direito especial de se apresentar como "os verdadeiros Estados Unidos". E os Estados azuis têm direito de perguntar por que, em um momento em que o governo federal voltou ao déficit e programas domésticos essenciais estão sofrendo cortes, uma pequena minoria de norte-americanos, já pesadamente subsidiados, se sente no direito de obter assistência ainda maior.

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Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado pelo jornal norte-americano "The New York Times".
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Tradução de Paulo Migliacci




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