A crise energética finalmente entrou no
rol das preocupações dos principais agentes econômicos. Nestes últimos dias, líderes
importantes do empresariado vieram a público manifestar suas preocupações com os efeitos que
os cortes de energia elétrica terão sobre a economia. Foram acompanhados por analistas políticos
que advertem para as implicações que a falta de energia terá sobre a avaliação
do governo FHC. É a democracia funcionando. Na medida em que a imprensa abre espaço para a discussão
pluralista desse tema, a sociedade civil vai sendo informada sobre um verdadeiro drama que se arrasta por muitos
anos. Pretendo usar este meu espaço na Folha para informar o leitor sobre alguns capítulos de uma
novela que já chamei aqui de "O samba do crioulo doido".
O descompasso entre oferta e demanda desse "input" fundamental de nossa economia tem sido no Brasil um
tema recorrente desde o fim da década de 80. Com o passar dos anos as previsões mais pessimistas
foram sendo desqualificadas, na medida em que a crise econômica dos anos 90 reduziu a taxa de crescimento
histórica da economia. Mas o problema permaneceu presente, como uma espada sobre todos nós. Só
não era visível para o público!
O governo FHC enfrentou essa questão desde seus primeiros dias. Isso ninguém pode negar. Liderados
pelo ministro de Minas e Energia do primeiro mandato de FHC, o engenheiro nomeado por influência do senador
Antonio Carlos Magalhães, Raimundo Brito, um grupo de membros do governo começou ainda em 1995 a
desenhar uma nova modelagem para o setor. Tarefa de difícil solução, pelas distorções
herdadas do modelo desenhado e implantado pelos governos militares. Vivíamos a época do "Brasil
potência" e do Estado como principal agente de planejamento e execução das ações
nesse setor estratégico da economia. O Tesouro Federal, por meio do Sistema Eletrobrás, e os governos
de alguns Estados, como São Paulo, Paraná e Minas Gerais, arcavam com os custos desses investimentos.
Parcos recursos fiscais e muito endividamento externo eram suas fontes de financiamento.
A passagem de um período em que o controle fiscal não era prioridade dos governos de plantão
para uma situação em que a estabilidade monetária exigia superávits primários
elevados forçou uma mudança radical no setor elétrico. Era necessário reduzir a presença
do Estado, incorporar os investimentos privados e aumentar a competição nos mercados. Essa foi a
tarefa prioritária estabelecida pela nova equipe de governo. Posição de coragem, pois muitas
decisões, de custo político elevado no curto prazo, deveriam ser tomadas sem que nenhum benefício
pudesse ser esperado pelo governo. Uma clássica situação de curva J, em que os custos seriam
cobrados anos antes dos resultados, que somente viriam pela eliminação desse gargalo perigoso para
nosso crescimento sustentado.
Sabia-se, entretanto, que todas essas mudanças demandariam muito tempo, tanto pela necessidade de um estudo
profundo sobre as novas regras a ser implantadas como pela definição de um plano de transição
entre um modelo e outro. Como já fiz referência neste espaço, uma situação muito
parecida com a encontrada pelo ex-ministro Sérgio Motta no setor de telecomunicações.
Foi aqui que o governo errou, abrindo espaço para a crise atual. Pressionado pelas necessidades do ajuste
fiscal imposto pela consolidação do real, todos os investimentos que eram de responsabilidade das
estatais do setor foram cancelados. Mesmo aqueles que permitiriam, com gastos limitados, um aumento razoável
da oferta no curto prazo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a construção de linhas de transmissão
que deveriam ligar o Norte e o Sul à região Sudeste. Esse sistema permitiria que a energia comprada
da Argentina e da Venezuela chegasse ao parque industrial mais importante do país. Esses investimentos custariam
pouco mais de R$ 1 bilhão e, se não tivessem sido abandonados por pressão do Ministério
da Fazenda, poderiam estar agregando hoje bem mais de 1.000 megawatts à oferta de energia na região
Sudeste.
Outro investimento quase abortado pela política de caixa de padaria do ministro Malan foi o término
da construção da usina de Porto Primavera pela Cesp. A Cesp, para finalizar essa obra, precisava
de uma autorização do Banco Central para emitir debêntures, que seriam compradas por fornecedores
de equipamentos e empreiteiras. Somente a intervenção direta do ex-ministro Sérgio Motta junto
ao presidente da República fez a operação, depois de muita luta interna, ser aprovada. Não
por outra razão a Usina de Porto Primavera, que hoje produz com suas nove turbinas em funcionamento bem
mais de 1.000 MW da tão necessária energia elétrica para o Estado de São Paulo, chama-se
Usina Sérgio Motta.
Em estudo publicado pela imprensa na última quarta-feira, a FGV procurou dimensionar os impactos da restrição
da oferta da energia elétrica sobre a economia brasileira. Chama a atenção a queda prevista
na arrecadação de impostos, de mais de R$ 6 bilhões. Sendo isso verdade, a decisão
de economizar os gastos com o chamado linhão Norte-Sul em 1996 e 1997 representou, na prática, um
furo nas contas públicas, no nível estadual e federal, de mais de R$ 4 bilhões. Número
que seria ainda maior se o saudoso Sérgio Motta não tivesse metido sua colher vigorosa na sopa do
Ministério de Minas e Energia. Como diz a sabedoria popular: aqui se faz, aqui se paga!
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Luiz
Carlos Mendonça de Barros,
58, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura.
Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
Folha de São Paulo, 11 de maio de 2001, p.B.2.
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