A DÍVIDA COM OS CONSUMIDORES

Luiz Pinguelli Rosa

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O plano emergencial divulgado no início de julho pelo governo jogou todo o custo da crise nas costas dos consumidores, dando vantagens enormes aos grupos investidores no setor elétrico e aumentando o valor normativo da geração, o que implicará aumento na já alta tarifa. A lógica é atrair o capital privado, em vez de fazer investimentos públicos. Em resposta a críticas de Lula, o presidente Fernando Henrique declarou que aquele estava isolado. Ocorre o contrário. Tenho conversado
com muita gente, inclusive industriais, como Antônio Ermírio de Moraes, que expressam descontentamento. O quadro lembra "O Alienista", de Machado de Assis, cujo protagonista achava que todo mundo estava alienado. Acabou por constatar que o problema era com ele. A crise de energia elétrica não é apenas uma crise de energia, é uma crise do modelo econômico, já que diz
respeito às restrições de investimentos públicos e à privatização -restrita à venda de ativos das estatais, sem atenção à expansão da oferta de energia. Alguns saem agora em defesa do modelo, dando a crise como conjuntural e exibindo argumentos cientificamente incorretos. O argumento da falta de chuvas, já rejeitado e repetido "ad nauseam", volta à tona.
A defesa da desvinculação entre o modelo econômico e a crise elétrica quase se resume à defesa da prioridade absoluta ao controle das despesas públicas, por causa da política monetária, dando legitimidade às restrições do FMI. Partindo desse pressuposto, decorre que, não fossem as restrições a investimentos públicos em infra-estrutura, seriam necessários, para cumprir as metas da política monetária e do FMI, cortes piores em saúde, educação etc. Ou seja, o racionamento de energia seria o preço a pagar pelos gastos sociais do governo, o mal menor. Ocorre que os investimentos na
área social não foram lá essas coisas, se comparados aos gastos do governo com o sistema financeiro, como socorro a bancos quebrados e coberturas de manobras cambiais, decorrentes do modelo de gestão da economia. Esse mix de argumentações, a mistura de tarifas de
ônibus de São Paulo com crise de energia elétrica nacional, pode ser comparado ao caso hipotético de o construtor do Palace 2 (prédio que desabou no Rio, matando alguns moradores) alegar que o caso poderia ter sido pior se o Palace 1 caísse também. A privatização do setor elétrico ruiu, como o Palace 2. Essa história de prioridade absoluta ao controle da inflação a qualquer custo, simbolizada pelos ministros Malan, no Brasil, e Cavallo, na Argentina, se assemelha a um desastre em que, para salvar uma vítima com o pé preso por um desabamento, remove-se um pilar, fazendo desabar uma
viga sobre a cabeça da vítima -ela acaba com os pés livres, mas com a cabeça esmigalhada.
É preciso controlar a inflação sem matar o desenvolvimento. A Lei de Diretrizes Orçamentária para 2002 foi votada pela maioria da base do governo, em bloco, como se não houvesse a crise de energia. O número de programas voltados para energia caiu, de 2000 para 2001, de 9 para 4; o número de ações desagregadas no setor caiu de 39 para 9. Também manteve-se a exigência de R$ 5 bilhões de superávit nas estatais. Furnas e Eletrobrás têm recursos próprios para investir, mas o governo não
autoriza. Há uma bomba de efeito retardado na crise de energia elétrica. Ela é decorrente da política econômica do governo. Trata-se de um passivo contábil entre as geradoras elétricas, a maioria ainda estatal, e as distribuidoras, a maioria privatizada e controlada por grandes grupos estrangeiros com trânsito na área econômica e com enorme capacidade de influir. Essa é a única explicação possível para a extrema benevolência com que são tratadas as concessionárias elétricas na medida provisória do racionamento. Elas poderão ganhar dos dois lados. Pelo chamado anexo 5 dos contratos de concessão, as geradoras -a maioria delas federais; leia-se, pois, os contribuintes- deverão ressarcir
parte do corte de energia contratado pelas concessionárias de distribuição ao preço do MAE
(Mercado Atacadista de Energia), que está altíssimo. O total poderá chegar a bilhões de reais.
Por outro lado, a medida provisória do racionamento, pela combinação de seus artigos 14, 15, 20 e 28, admite que parte dos recursos das sobretarifas será destinada a garantir o equilíbrio econômico das concessionárias, ou seja, a lucratividade delas. As sobretarifas foram adicionadas para reprimir o consumo e cumprir metas de corte, incluindo expressivo número de famílias de renda modesta. Os consumidores, que pagam pelo fornecimento ininterrupto, tiveram rompido seu contrato,
feito em seu nome pelo poder concedente, que é o governo federal. E, ademais, já estão pagando mais caro por uma energia não garantida e interruptível. A lei de concessões, feita para regulamentar a
Constituição, estabelece que é dever dos concessionários garantir a continuidade do serviço e sua expansão, o que não está sendo cumprido. Cabe, portanto, aos consumidores cobrar das concessionárias a energia cortada. Foi cortado em média 20% do consumo, exceto nas
regiões Norte e Sul. As demais regiões totalizam 80% do consumo nacional, ou seja, cerca de 240 milhões de MWh. Com o preço da energia no MAE, de US$ 300 por MWh, a importância devida pelas concessionárias aos consumidores, correspondente a um mês de cortes, já seria de US$ 12 bilhões, descontando a parcela das regiões Sul e Norte, que ainda têm energia disponível. Se os cortes forem estendidos a um ano, mantidos os valores atuais, será de US$ 144 bilhões a dívida das concessionárias para com os consumidores. Isso por equidade com o pleito delas com as geradoras, que recai no Tesouro, ou seja, nos contribuintes. A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar constitucional a medida provisória do racionamento, não revogou o Código Civil. Afinal, nada que é legal pode ser inconstitucional, mas a lei especifica, dentro de limites, aquilo que a Constituição dispõe em termos gerais. Parece que a crise está servindo para dar altos lucros a poucos e prejuízos a muitos. Para atrair investimentos privados às pressas, foram dadas vantagens antes negadas, agora justificadas pela escassez de energia elétrica artificialmente criada.
Na Califórnia, apura-se se houve um locaute de empresas geradoras para criar escassez e subir preços, que lá deixaram as distribuidoras em dificuldades, obrigadas a cumprir seus contratos de concessão até o limite de quase quebrarem. No Brasil, quem vai quebrar é o consumidor.

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Luiz Pinguelli Rosa, 59, físico, é coordenador do Instituto Virtual de Mudanças Globais da Coppe e professor titular da UFRJ.

Folha de São Paulo, 12 de julho de 2001, p.A3




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