A terra vermelha e quase sem cobertura vegetal de Gilbués, no sul
do Piauí, parece se desmanchar ao abrir crateras e ondulações que
avançam a cada dia sobre a cidade. É o efeito mais visível de um
processo de desertificação, que consome a área e amplia a miséria
da população mais carente.
A região de Gilbués (800 km de Teresina) é um dos quatro núcleos
de desertificação no país onde a degradação
ambiental e os resultados socioeconômicos do fenômeno são
considerados mais graves pelo Ministério do Meio Ambiente.
Na sede de Gilbués, as crateras já chegaram a um terreno atrás da
igreja central e derrubaram uma casa no bairro Santo Antônio. Um
trecho da BR-135, a sete quilômetros do centro, teve de ser
reforçado na última semana porque uma cratera ameaçava a
estrada.
Toda a região do semi-árido e das áreas que sofrem os efeitos da
seca são consideradas susceptíveis à desertificação. Esse é um
problema que preocupa o mundo inteiro e que, no Brasil, pode afetar
1,3 milhão de km2 (16% do total) e 31,6 milhões de pessoas, o que
representa 18% da população no país, caso nada seja feito.
A erosão causada pelo processo de desertificação, além de
prejudicar o plantio de subsistência em Gilbués, município com cerca
de 10 mil habitantes, ameaça casas de moradores. Miraci Ribeiro da
Silva, 41, usa uma enxada e entulho de construção para tapar parte
das crateras que se formaram no quintal da casa onde mora com
cinco filhos e dois netos.
Ela não deixa o local, que é emprestado, porque não tem outro lugar
para ir. Todos da família vivem lá com os R$ 100 por mês que a
mulher ganha de faxinas e dos benefícios sociais do governo. "Se eu
não tapar, depois da próxima chuva, a gente não entra em casa."
Contrastes
A cidade é repleta de contrastes ambientais e socioeconômicos. Do
lado mais pobre predomina o terreno irregular, que se abre em"grotas" (como a população chama as crateras e ondulações
formadas pela desertificação). Na parte mais alta e plana, começa
uma corrida por investimentos em soja, com produtores do Sul do
país se instalando para aproveitar as terras baratas e férteis.
Não há emprego para todos. "Outro dia, numa dessas fazendas de
soja, fizeram uma seleção para contratar dois. Quando cheguei, já
havia mais de 15 na minha frente", afirma Arivaldo Rodrigues
Alves, 37. Quando chove, ele planta uma roça, mas, na maior parte
do ano, busca no garimpo de diamantes algum meio para a
sobrevivência. "Faz quatro meses que não acho nada."
A riqueza do diamante na cidade teve seu auge entre as décadas de
40 e 50 e deixou marcas que até hoje têm conseqüências.
A cada chuva, os buracos esquecidos se abrem ainda mais,
formando enormes crateras. "Teve muita gente que morreu
soterrada por aqui", diz Ivete Oliveira, que preside a ONG SOS
Gilbués.
Entre os que insistem no garimpo está Juraci Barbosa da Cunha, 50."Faço isso desde menino, assim como meu pai."
O garimpo não é a única causa das deformações na terra de
Gilbués. Em boa parte da área atingida nunca houve extração
mineral. "Entre os fatores que interferiram está o mau uso do solo,
tanto na agricultura como na pecuária", disse o professor Luiz
Gonzaga Carneiro, da UFPI (Universidade Federal do Piauí).
Carneiro desenvolve em Gilbués, com a Fundação Agente e apoios
governamentais, um núcleo de pesquisas para recuperar o solo,
usando técnicas para o plantio, como curvas de nível e a criação de
pequenas barragens.
A experiência começou no ano passado, em uma área bastante
degradada. Desde então, algumas mudas de leguminosas e de
capim plantadas estão se desenvolvendo. "Uma prova de que a
terra é fértil e pode ser recuperada." |
Em um projeto que envolve sete ministérios, secretarias estaduais e
ONGs, o governo federal lançou o PAN (Programa de Ação
Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da
Seca), com previsão de investir R$ 23,5 bilhões até 2007.
As comunidades atingidas diretamente pelo problema da
desertificação, como em Gilbués, querem ver as ações na prática.
Investimentos já realizados por governos passados não surtiram
efeito.
Em Gilbués, foi construído, com verba pública, um prédio para o
Instituto Desert, de Teresina, que nunca funcionou. Salas de
capacitação, auditórios e um terreno suficiente para pesquisas estão
abandonados. "Por isso a população rejeita o tema desertificação. Não quer nem
ouvir falar. Já houve muitas promessas, mas nunca foi feito nada",
afirma Ivete Oliveira, presidente da SOS Gilbués.
A dificuldade para conseguir investimentos aumenta ainda mais
pelas desavenças políticas locais. A ONG é ligada ao PT -Oliveira
foi eleita vereadora pelo partido. O prefeito do município é do PFL.
"Enquanto não acabarem as barreiras políticas, pode ter certeza de
que não vai mudar nada e que o processo de desertificação só vai
aumentar", disse José Celesmá Bertulino, engenheiro agrônomo e
secretário da Agricultura de Gilbués.
A descrença também é justificada pela demora nas ações dos
governos sobre o tema, mesmo com apoios internacionais. O
conceito internacional de desertificação foi discutido no Brasil, na
Eco 92. Em 1995, o país assinou um convênio de cooperação com o
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Apenas nove anos depois o plano de ação para o combate à
desertificação foi colocado no papel.
O PAN é uma soma de programas sociais em curso, como o
Bolsa-Família (os investimentos sociais devem tomar 90% dos
recursos do programa), e de projetos ambientais, como a
recuperação do rio São Francisco.
Para o coordenador-técnico José Roberto de Lima, do Ministério do
Meio Ambiente, a maior novidade do programa é pôr o tema
desertificação como prioridade.
O problema foi tema de discurso de Marie-Pierre Poirier,
representante do Unicef no Brasil. Ao divulgar um relatório sobre a
miséria entre as crianças no país, disse que "a pobreza brasileira
tem a cara da criança do semi-árido nordestino". Pelo relatório, 45%
das crianças e dos adolescentes do Brasil vivem abaixo da linha da
pobreza. (KF)
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