POPULAÇÃO DESCRÊ DE OBRA NO SÃO FRANCISCO

 

Kamila Fernandes

Acostumado ao clima do semi-árido, o agricultor Petrônio de Teixeira Dias, 59, já começou a acender velas a são José, à espera de que a chuva chegue pelo menos até o dia 19 de março, dia do santo, para ele poder plantar. Ele mora em frente ao leito do único rio de Monteiro, no interior da Paraíba, seco nesta época do ano, mas que poderá ser perenizado com a obra de transposição do rio São Francisco. "Mas será que essa obra vai acontecer mesmo?", perguntou ele à Folha.
A mesma pergunta do agricultor paraibano foi feita à reportagem em 12 municípios do Nordeste setentrional (ao norte da bacia do rio São Francisco), nos Estados do Ceará, de Pernambuco e da Paraíba, por pessoas que, pelo projeto de integração de bacias, a chamada transposição, deverão deixar suas casas para a construção de canais que servirão para transportar a água.
Enquanto as obras não começam, por ser necessário esperar primeiro a licença ambiental do Ibama, o Ministério da Integração Nacional tenta adiantar o que é possível. Desde agosto de 2004, um grupo cadastra moradores das áreas por onde os canais deverão passar, faz o levantamento dos terrenos e tenta explicar à população o que vai acontecer.
"Mas é difícil mesmo para essas pessoas acreditarem. Vamos ter de voltar para explicar tudo de novo", disse Elianeiva Odízio, técnica do ministério responsável pelo cadastramento.
"Outros governos que também prometeram a obra não tinham o compromisso e a vontade política que tem o governo Lula com o povo nordestino. Essa é a diferença", afirmou o chefe de gabinete do ministério, Pedro Brito, coordenador-geral do projeto.

Desconfiança
A prova mais palpável de que a transposição poderá mesmo existir são alguns pequenos marcos de concreto instalados ao longo dos 622 km de canais da obra.
Em frente à casa onde a agricultora Josefa Lopes Francelino, 39, mora com os oito filhos, no assentamento Quixabinha, em Mauriti, no Ceará (a 493 km de Fortaleza), há um desses marcos. "Vieram aqui explicar que vai chegar água, que vai ser bom para todo mundo e que vamos ter de sair daqui. Só que, depois, não aconteceu mais nada. Vou esperar para ver."
Em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, outros marcos de concreto foram instalados no percurso da tão falada transposição. A obra, na época, não chegou a sair do papel.
A descrença é tamanha que nem políticos da região a ser beneficiada usam a obra em proveito próprio. Um exemplo é o de Lavras da Mangabeira (CE), cortada pelo rio Salgado e terra do ministro das Comunicações, Eunício Oliveira (PMDB). O município é administrado por sua irmã, Dena Oliveira (PMDB).
"Aqui, a água que a gente tem para tudo é a do rio. Ninguém falou nessa transposição, mas, se vier, tomara que dêem uma ajuda para fazer irrigação", disse o agricultor Virgílio Souza, 32.
O rio Salgado, que deverá receber as águas do rio São Francisco em uma segunda etapa, planejada para ser concluída até 2010, já foi parcialmente perenizado por barragens inauguradas há um ano. A primeira etapa do projeto prevê a construção de 300 km de canais, nos eixos norte e leste, até 2006.
Assim como em Lavras, na maioria dos 12 municípios do Nordeste setentrional visitados pela Folha, havia água. O que não havia eram sistemas de distribuição e abastecimento nos locais mais distantes das áreas urbanas.
Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Integração Nacional, obras complementares, para fazer essa água chegar às pessoas, serão executadas pelo governo federal, que prevê construir 2.600 km de adutoras na região, mas boa parte da responsabilidade deverá ficar mesmo com os governos estaduais.

Indenização
Mesmo antes de sair a licença ambiental para o início das obras da transposição, o Ministério preparou um cadastro e uma tabela de preços para indenizar as famílias que terão de ceder terras e casas para a passagem dos canais que cruzam o sertão.
O cadastro das famílias começou em agosto do ano passado e agora está na fase de revisão. Já a tabela de preços para as desapropriações está na mesa do ministro Ciro Gomes para ser aprovada.
Segundo Odízio, responsável pelo cadastramento, a tabela leva em conta preços de mercado, e não apenas os usados por órgãos governamentais, como o Incra. Para evitar a especulação imobiliária, tudo foi feito antes da aprovação final do projeto. "Sabemos que as terras da região podem dobrar de valor. Até por isso, levamos em conta as transações imobiliárias mais recentes", disse.
O cadastramento antecipado e discreto dos moradores é também uma tática para evitar um inchaço populacional das áreas, disse. "Poderia haver uma invasão."
Foram relacionadas 725 famílias que vivem em um trecho de 200 metros, pelos 622 km de canais a serem construídos para a transposição.

 
COMUNIDADES VIZINHAS DE AÇUDE SOFREM FALTA DE ÁGUA
Do alto da parede do açude do Castanhão, na bacia hidrográfica do médio Jaguaribe, no Ceará, não é possível ver o fim de tanta água. Com capacidade de 6,7 bilhões de metros cúbicos, o reservatório concentrava, na semana passada, 64,1% do total, com 4,3 bilhões de metros cúbicos.
Apesar da fartura de recursos hídricos, comunidades a menos de 30 km de distância do açude sofrem para ter acesso à água e dependem de favores políticos para manter seu abastecimento. Faltam a essa população obras que garantam a distribuição da água de forma ininterrupta.
Enquanto não chove, as 350 famílias de cinco comunidades localizadas fora da sede das cidades de Tabuleiro do Norte e de São João do Jaguaribe, a 220 km de Fortaleza, têm de esperar carros-pipa para encher cisternas construídas ao lado das casas. Na área urbana dessas cidades, há água.
O uso da água das cisternas tem de ser racionado porque o reabastecimento não acontece antes de um mês. Quando a água acaba, cada morador tem de ir à prefeitura refazer um cadastro e provar que precisa do carro-pipa.
Na comunidade de Cajueiro, em Tabuleiro do Norte, apenas a dona-de-casa Edwiges Paula Lima Souza, 41, tinha água na cisterna no dia 24 de fevereiro. Explicou que sua cisterna é abastecida pela prefeitura da cidade vizinha, São João do Jaguaribe. "Tenho título de eleitor lá e não pretendo mudar. Pelo menos a prefeitura manda água quando eu preciso."
Sua filha, Verinalda Lima Souza, 17, mora numa casa vizinha, mas havia mais de uma semana que não tinha água em sua cisterna, abastecida, como as demais, pela Prefeitura de Tabuleiro.
Enquanto não era feito o reabastecimento, ela e outros vizinhos pediam água emprestada a Edwiges para lavar, cozinhar, beber, tomar banho. "Aqui todo mundo tem de ser solidário, a gente não sabe o dia de amanhã."
Mais perto do açude do Castanhão, o assentamento Charneca, do Incra, em São João do Jaguaribe, onde moram 80 famílias, tem duas cisternas comunitárias, reabastecidas toda semana.
Há sete anos, a localidade, assim como as demais, espera a construção de uma adutora, pelo governo do Estado, para fazer chegar a água direto até as casas. Em novembro de 2004, a obra chegou a ser anunciada, mas foi suspensa.
Segundo Josias Farias Neto, da Secretaria de Desenvolvimento Local e Regional do governo do Ceará, a obra foi paralisada porque a escavação que deveria ter sido executada pela Prefeitura de Tabuleiro não foi concluída pela mudança de prefeito. "Agora fizemos novas reuniões, e a Prefeitura de São João do Jaguaribe se comprometeu a ajudar", disse.
Tanto Tabuleiro como São João do Jaguaribe estão entre os 39 municípios do Ceará que decretaram situação de emergência pela seca e que esperam ajuda federal para manter os carros-pipa.
 



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