O APAGÃO DA INTELIGÊNCIA
Roberto Pereira d´Araújo


 
A crise elétrica brasileira ainda não mostrou seus efeitos mais perversos. A sociedade já respondeu de maneira positiva à ordem de baixar o consumo. O triste é que essa surpreendente reação, que só evidencia a cidadania do brasileiro, não terá como contrapartida nenhuma garantia quanto aos apagões. 
A sociedade não sabe o quão perigosa é a travessia até o final do ano. As hipóteses quanto ao futuro das afluências dos rios e à evolução do consumo são suposições. O cenário com que o ONS trabalha -até para imaginar que o corte de 20% é suficiente- é de que as afluências para o Sudeste serão de no mínimo 75% da média do histórico. Afluências inferiores não são um evento tão raro e, se conseguirmos passar por todo o período seco sem apagões, isso não quer dizer que não tenhamos corrido um risco inaceitável para um serviço tão essencial quanto a energia.
Esse é a questão central da crise. Como um país em desenvolvimento, com uma enorme população
socialmente excluída, com imensos espaços geográficos no abandono, com um desemprego crônico e com uma indústria ainda lutando por um lugar no mercado mundial, se envolve numa aventura que termina por gerar essa crise sem precedentes? Ao contrário do que dizem as autoridades, a implantação de um sistema de mercado no setor elétrico é uma experiência recente no mundo. O 
velho e testado conceito do serviço público é, na realidade, a regra no mundo elétrico. O modelo de
mercado é a exceção. 
Outra desinformação é a noção de que, no mundo desenvolvido, os sistemas de produção de energia
elétrica são privados. Apenas quatro países desenvolvidos têm seus sistemas totalmente privatizados: Reino Unido, Espanha, Japão e Bélgica. A maioria tem sistemas mistos. Poucos adotaram o
conceito de desregulação. Os EUA, que têm sistemas regulatórios independentes em cada Estado, mostram um recuo tático na direção contrária à liberalização. Como o Brasil entrou de cabeça em uma experiência cujo funcionamento ainda está em teste? Como o Brasil implanta o sistema em apenas cinco anos, quando o Reino Unido, modelo inspirador, levou 15 anos para completar o processo? 
Antecedendo o apagão, infelizmente "apagou-se" a inteligência brasileira. Preferiu-se importar um modelo que nada tem em comum com o Brasil. Desprezou-se toda a experiência genuinamente brasileira de décadas de planejamento, construção e operação de um sistema hidrelétrico de grande porte. Um dos pontos fortes da metodologia brasileira na operação do sistema é a engenhosa complementaridade entre térmicas e hidráulicas na composição da energia garantida. Enquanto o sistema brasileiro tiver predominância de fontes hídricas, as usinas térmicas terão de se submeter a um padrão de complementaridade. Quando elas operam de forma integrada ao sistema, seu custo cai vertiginosamente. E pelo simples fato de que elas são utilizadas apenas quando não há energia secundária hídrica. Infelizmente, pelo tipo de contrato com o gás da Bolívia, as térmicas serão utilizadas "na base", mesmo nos períodos em que a abundância de água dispensar outra fonte energética. Seremos obrigados a operar contra a lógica, assumindo o aumento dos custos decorrentes. 
Apesar da ladainha anunciando o fim da energia barata no Brasil, ainda existem projetos hidrelétricos
extremamente interessantes para serem construídos. Infelizmente, com as alterações feitas no setor, esses aproveitamentos foram atrasados e estão concedidos a grupos privados que, incentivados pela legislação, não pretendem oferecê-los ao serviço público. Mesmo outros projetos que apontam para um custo similar ao do das térmicas a gás têm pouco impacto na balança comercial. Empregam intensivamente e terão vida útil bem superior. Mas caso a bomba-relógio da liberação do mercado em 
2003 não seja desarmada, os preços subirão. Ninguém em sã consciência é contra as usinas a gás.
Afinal temos o gás e precisamos de energia. Mas quanto custará? Poderemos pagar? Será que uma família que consome 200 kW ao mês e vive com dois ou três salários mínimos pode suportar uma energia que será cotada em dólar? Parece não haver saída. Verdade? Não. 
A saída está, mais uma vez, na nossa geografia. Os rios brasileiros, "domesticados" pelas usinas hidráulicas, oferecem um precioso subproduto: uma enorme energia secundária, praticamente gratuita, uma espécie de brinde que acompanha o prato principal, a energia garantida. Agora estamos sem ela, pois o que o governo fez foi enganar a sociedade entregando energia secundária -e
portanto interruptível- no lugar da energia garantida pela qual pagamos. As primeiras térmicas, portanto, deverão entrar para ajudar na recuperação dos reservatórios e na reconstrução da energia secundária. Quando recomposta, essa energia interruptível poderia ser contratualmente oferecida às centrais térmicas a gás a um custo quase zero. Isso compensaria o seu alto custo. A contrapartida poderia ser a exigência de oferecer a energia resultante dessa combinação para o serviço público licitada por tarifa. Essa solução é o resgate da antiga forma integrada das térmicas, que foi desmontada na busca de mecanismos de mercado que não substituem a lógica. Evidentemente esse acordo envolveria a Petrobras, a Eletrobrás e o capital privado. 
O prazo de recuperação dos reservatórios pode até ser compatível com os entendimentos com outros setores da indústria no sentido de incentivar um mercado para o gás que dê a flexibilidade necessária à questão energética. Não fazer esse arranjo significa implantar um sistema de preços insuportável para a economia brasileira. Não se trata de uma tarefa fácil. Certamente impossível para um governo que coloca o país ao sabor dos humores do "mercado", mas perfeitamente viável para um governo
que decide os seus caminhos.

Roberto Pereira d'Araújo, 54, engenheiro, é diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico).

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA