A greve de professores e de funcionários das universidades federais ameaça o ano letivo de milhares
de estudantes e até a realização de vestibulares, numa radicalização de proporções
inusitadas - uma
radicalização explícita nas grosserias verbais dos grevistas dirigidas ao ministro da Educação
na semana passada, ultrapassando os limites da civilidade.
Mas a lição que se tira das salas de aula vazias é muito pior que o tumulto passageiro no
calendário escolar: a tendência das universidades públicas, caso não se alterem os sistemas
de financiamento, é a decadência da imagem de excelência acadêmica. Corre o risco de ocorrer
nas faculdades públicas o que ocorreu no ensino básico. As escolas públicas já foram
disputadas pelos filhos da elite, que recebiam aulas de notáveis professores, intelectuais influentes em
seu tempo. Com a crise, os alunos provenientes das famílias mais abastadas foram drenados para as instituições
privadas. Essa debandada contribuiu ainda mais para diminuir a qualidade dos colégios mantidos com verbas
oficiais.
Um dos sintomas desse movimento surge num recente ranking das melhores escolas particulares de ensino básico
de São Paulo. Os responsáveis pela pesquisa nem sequer estabeleceram critérios para avaliar
as públicas, talvez supondo que fosse inútil fazê-lo.
As razões da derrocada das universidades
públicas são de uma nitidez extraordinária. Basta conversar com alunos que se formam no ensino
médio das melhores escolas, especialmente em São Paulo. Muitos deles dizem que, mesmo que passem
no vestibular para uma universidade pública, preferem pagar mensalidade em algumas escolas - por exemplo,
na Fundação Getúlio Vargas. E, note-se, os cursos de administração ainda estão
entre os mais reverenciados da USP.
Ganhar R$ 4.000 mensais numa universidade pública exige muitos anos de dedicação, título
de doutor, credencial para o topo da carreira. Não é difícil receber tal salário nas
melhores escolas de ensino médio. E, muito menos, nas faculdades privadas, que, na disputa por alunos, acenam
com altos salários para os professores das instituições públicas. Há levas de
professores que, no auge de sua capacidade intelectual, se aposentam e vão dar aulas em instituições
privadas, nas quais, na maioria das vezes, não existe pesquisa.
A verdade inquestionável é esta: um professor da universidade pública, considerando-se sua
preparação, ganha mal. A rigor, não há grande estímulo para atrair talentos
à vida acadêmica.
Nisso quase todos concordam. O problema são as saídas.
É de uma estupidez completa - apenas fruto da cegueira ideológica frequente nos discursos de muitos
grevistas- imaginar que cabe apenas ao Estado distribuir dinheiro às universidades.
Existem alternativas originais, como, na USP, as fundações que vendem serviços. Com isso,
ajudam a melhor remunerar o professor e a garantir fonte de recursos a algumas faculdades. É o que acontece,
em especial, nos cursos de administração e de economia. Essa solução é, porém,
bombardeada dentro da corporação; acusam as fundações de conspurcar o ideal do ensino
público e gratuito. Cretinice, claro, mas seduz muita gente letrada.
Os dirigentes das universidades não foram treinados para captar recursos na iniciativa privada; há,
aqui e ali, casos isolados - alguns deles, aliás, bem-sucedidos- de patrocínios de projetos.
Em um país em que a bolsa-escola é de R$ 15 por aluno, o custo de um estudante de universidade sai,
no mínimo, por R$ 700 mensais. Muitos desses alunos pagavam essa quantia como mensalidade nas escolas privadas
de onde vieram antes de receberem educação gratuita. É mais um instrumento de concentração
de renda. Alguns desinformados alegam que há muitos estudantes que saem de escolas públicas e que,
portanto, a universidade não seria tão elitista quanto se imagina. Mentira. É só observar
os cursos mais disputados - engenharia, medicina ou administração, por exemplo-
para perceber no corpo discente a proporção entre os alunos que vêm das escolas privadas e
os que vêm das públicas.
É uma simples questão de bom senso cobrar mensalidades de quem pode pagar e dar bolsa a quem
não dispõe de recursos. Os mais ricos - nós, com nossos privilegiados filhos - ajudaríamos
assim a financiar, em parte, a melhoria da qualidade da educação e a reter os melhores professores.
O dinheiro dos governos deve dar preferência ao ensino básico para, pelo menos, tentar reduzir a distância
entre as possibilidades.
É curioso como uma enorme legião de acadêmicos se imagina progressista mesmo defendendo uma
minoria de privilegiados.
PS - Por falar em minoria e inclusão social, uma simples medida concorreria, sem aumento dos gastos públicos,
para a melhoria da educação. Seria vetada a concessão de incentivo da Lei Rouanet para o projeto
cultural que não previsse entrada gratuita para certo número de alunos de escolas públicas
e elaboração de manuais para os professores trabalharem em sala de aula o
espetáculo, o filme ou a exposição.
Gilberto
Dimenstein, Folha
de São Paulo, 14 de outubro de 2001, p. C6
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