"A
burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os
instrumentos de produção e, portanto, as relações
de produção, isto é, todo o conjunto das relações
sociais. Esta mudança contínua da produção,
esta transformação ininterrupta de todo o sistema social,
esta agitação, esta perpétua insegurança
distinguem a época burguesa das precedentes. Todas as relações
sociais tradicionais e estabelecidas, com seu cortejo de noções
e idéias antigas e veneráveis, dissolvem-se; e todas as
que as substituem envelhecem antes mesmo de poder ossificar-se ."
Marx e Engels, "Manifesto Comunista", 1848 (destaque do autor).
Este artigo consuma meu afastamento do Partido dos Trabalhadores, do
qual me desligo formalmente. Aqui não me dirijo a qualquer instância
formal do partido, nem aos seus dirigentes no próprio partido
e no governo, mas aos petistas e aos cidadãos em geral. Aos primeiros
por ter compartilhado com eles a militância durante todos os anos
de existência do partido, e aos segundos por serem os únicos
detentores formais, pela Constituição, do poder republicano
e democrático, aos quais o Partido dos Trabalhadores e seu governo
devem obediência.
Ambos confiaram no Partido dos Trabalhadores, seja na condição
de militantes e eleitores, seja na condição de cidadãos
que permitiram, pela sua reiterada aposta na democracia, a existência
do Partido dos Trabalhadores e sua chegada ao Poder Executivo e à
maioria na Casa legislativa que representa o povo. Tenho o direito de
cobrar do Partido dos Trabalhadores pelo governo que ele realiza, pela
minha condição de militante e de cidadão. E, daqui
por diante, exclusivamente pela minha condição de cidadão.
Pois muito além do que imagina e pensa a direção
partidária, o PT tem que dar satisfações à
cidadania, que lhe deu as condições para disputar democraticamente
e chegar ao governo. Falta a essa liderança consciência
democrática e republicana, enquanto lhe sobram arrogância,
prepotência e maneirismos caboclos de péssima fatura.
Não me movem nem arrogância protagônica -este belo
termo mais castelhano que português- nem propósitos catilinários
nem profecias catastróficas nem o desejo de que outros me sigam
neste caminho. Cada um dos petistas e cidadãos é independente
e único sujeito de suas próprias ações,
decisões e opções. Apenas não confio mais
nos dirigentes do partido -os que estão no governo e os que permanecem
nas instâncias partidárias. Sequer suponho que esse todo
seja homogêneo.
Muitos dos que estão no governo e permanecem e permanecerão
no partido têm o direito de assim procederem e não os transformo
em meus inimigos, sequer em adversários. Tenho a certeza de que
continuarei a manter fraternais amizades com muitos deles e continuarei
a considerá-los membros importantes da esquerda brasileira e
lutadores pelas transformações na sociedade brasileira
em seu caminho por maior justiça, igualdade social e socialismo.
Afasto-me porque não votei nas últimas eleições
presidencial e proporcional no Partido dos Trabalhadores, reiterando
um voto que se confirma desde 1982, para vê-lo governando com
um programa que não foi apresentado aos eleitores.
Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios
nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para
o Senado da República pediram meu voto para conduzir uma política
econômica desastrosa, uma reforma da Previdência anti-trabalhador
e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária mofina
e oligarquizada, uma campanha de descrédito e desmoralização
do funcionalismo público, uma inversão de valores republicanos
em benefício do ideal liberal do êxito a qualquer preço
-o "triunfo da razão cínica", no dizer de César
Benjamin-, uma política de alianças descaracterizadora,
uma "caça às bruxas" anacrônica e ressuscitadora
das piores práticas stalinistas, um conjunto de políticas
que fingem ser sociais quando são apenas funcionalização
da pobreza -enfim, para não me alongar mais, um governo que é
o terceiro mandato de FHC.
Mesmo a "jóia da coroa" do governo, sua política
externa, tem não poucos aspectos de retrocesso: a crença
no livre comércio, em áreas de mercados livres, na contramão
da rica experiência latino-americana, teorizada brilhantemente
por Raúl Prebisch e Celso Furtado. Nem o meu voto nem os dos
milhões que confiavam em mudanças substanciais no rumo
do país e depositaram essa confiança no presidente eleito
e nos que o acompanham, no governo e no partido, foi dado para isso.
Minhas críticas ao governo já são antigas, até
antes da posse. Nelas, todas públicas, em artigos e entrevistas,
manifestei, sem rebuços, não apenas minha discordância,
mas minha convicção de que, por esse caminho, não
chegaremos a bom termo neste primeiro governo federal do PT. Não
estou só nesta posição. Mas minha discordância
não se funda apenas -e esse apenas já seria muito- no
que poderia ser considerado um desvio conjuntural, uma operação
política tática para governar e atenuar os efeitos da
herança de FHC. Ela vai mais longe: há transformações
estruturais na posição de classe de um vasto setor que
domina o PT, que indicam uma real mudança do caráter do
partido.
E, como posições de classe não se mudam com simples
mudanças de nomes ou de conjuntura ou de melhoria de alguns indicadores
econômicos, considero que o governo Lula está aprofundando
a chamada "herança maldita" de FHC e tornando-a irreversível.
Não votei para esse aprofundamento, mas contra ele. Essa posição
crítica tem sido contínua e não se confunde com
personalismos, com acusações. Mesmo quando errei ao adjetivar
a atuação do ministro-chefe da Casa Civil, o que reconheci
através de carta que foi publicada, minha intenção
foi chamar a atenção para a repetição de
práticas que apenas fizeram do Brasil um dos países mais
desigualitários do mundo capitalista, apesar de ter sido o segundo
em taxa de crescimento no século que foi de fins do 19 até
os anos 70 do século passado.
O reconhecimento de meu próprio erro não foi acompanhado
de gesto igual, pois sequer a correspondência do próprio
ministro através de seu advogado chegou ao conhecimento público,
informando que ele próprio havia sugerido a renúncia à
ação judicial que anunciara, substituindo-a por uma troca
de correspondência que considerasse as duas partes satisfeitas.
Isto é parte da sutil prática de desqualificação
aos que fazem oposição, a permanência do "homem
cordial" que não suporta a distância, que toma a assunção
de uma responsabilidade cidadã como retratação
e covardia.
Ao invés de ver nela a recusa do princípio schmittiano
da política como relação amigo-inimigo, que pode
contribuir para liquidar de vez o que ainda há -e como!- de autoritário
na política brasileira. Poderia alegar minha condição
de fundador do partido, muito antes que muitos que hoje desfrutam do
poder a ele tivessem chegado. Mas não me interessa glorificar
nem heroicizar minha posição: abomino as instituições
de herança aparentadas ao capitalismo e declino das homenagens.
Partido é uma associação de cidadãos livres
para um projeto coletivo de poder, na definição clássica,
baseada em alguma experiência comum, de qualquer natureza, mas
sobretudo de classe. Não é uma questão afetiva,
embora ao longo dos anos muitos laços afetivos importantes tenham
se construído. Quando a liga que faz o partido, o projeto coletivo
de poder para transformação da sociedade no sentido do
socialismo, e de mobilização da sociedade para tanto,
se esgota, então é hora de deixá-lo. As amizades,
se forem sólidas e para além do partido, continuarão.
Tampouco me movem ressentimentos, como áulicos novos e antigos
intrigam na corte de Brasília. Qualquer dos intrigantes, na corte
ou alhures, está desafiado a relatar qualquer conversa que eu
tenha tido a respeito de cargos ou funções no governo.
Salvo Paulo
Vannuchi, e ele -tendo sido portador de uma mensagem do já eleito,
mas ainda não empossado presidente, em que este dizia que os
cargos de primeiro escalão teriam que ser negociados, mas para
qualquer cargo do segundo escalão, nas áreas de minha
competência e preferência, bastava eu escolher- sabe de
minha pronta recusa.
Abriu no meu escritório, em conversa reservada que ele pediu,
um imenso organograma do Estado brasileiro, para localizar cargos ou
funções de minha escolha. Pedi-lhe que fechasse o organograma
e dissesse ao presidente que eu nunca iria para qualquer cargo governamental,
mesmo o mais importante, pois a missão do intelectual é
exercer a crítica.
Foi a mesma conversa que havia tido com ele dois anos antes na casa
do professor Antonio Candido, quando Marta Suplicy se elegeu prefeita
de São Paulo, e o hoje presidente mandou dizer igualmente que
queria que eu escolhesse o cargo. E ele teve a mesma resposta que lhe
dei dois anos depois. Que foi a mesma resposta que dei à companheira
-sim, companheira- deputada Luiza Erundina, quando se elegeu prefeita
de São Paulo e convidou-me pessoalmente, por telefone, ela mesma
no aparelho, para ser seu secretário de Planejamento. Declinei
e indiquei o professor Paul Singer.
Que terminou sendo o excelente secretário de Planejamento de
Luiza Erundina; sem jactância, certamente ajudei Luiza a fazer
a escolha, com que São Paulo ganhou um de seus melhores secretários
dos últimos tempos. Muitos acharão precipitada a decisão,
na convicção de que o governo Lula ainda está em
disputa. Não é o meu caso: o governo Lula nunca terá
a hegemonia, apenas a formação de maiorias "ad hoc",
sem nenhuma solidez.
O PT trocou
a hegemonia que se formava por um amplo movimento desde a ditadura,
no qual o próprio partido tinha lugar e função
central, a direção moral que reclamava transparência,
separação das esferas pública e privada, fazia
a crítica do neoliberalismo, organizava os trabalhadores, incluía
os excluídos, indicava o caminho do socialismo, pelo prato de
lentilhas da dominação.
O PT no governo é um prolongamento da longa "via passiva"
brasileira, a expansão do capitalismo da exclusão, a repetição
do mesmo, desde o aliancismo desembestado até as políticas
dos tíquetes do leite. O PT é hoje o partido de centro
no espectro político brasileiro, junto com aquele que escolheu
como irmão, o PSDB: se odeiam, mas são irmãos.
E o pior é que não sabe disso. Pensa que está reformando
o país. Embora transformações estruturais que o
próprio PT sempre subestimou ajudem a explicar boa parte do seu
aburguesamento, ou do seu envelhecimento precoce, nas palavras de Marx
e Engels, dois "renegados" pelo PT do poder, a responsabilidade
das lideranças é inescapável. E a do presidente
assume um lugar central: ele é a liderança carismática
responsável, posto que ela projeta uma sombra de proteção
e encantamento sobre os processos reais.
Quando a própria liderança carismática não
tem consciência desse papel que lhe é imanente, então
a política como atividade dos cidadãos corre um sério
risco, pois o mito anula a política. Aos cidadãos cabe
recuperar o sentido da política e o primeiro e essencial passo
é desmitificar o mito.
Francisco de Oliveira, 69, é professor
titular (aposentado) de sociologia do Departamento de Sociologia da
FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da
USP, e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania-Cenedic-USP
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Meu
caro Genoino,
A afirmação que você defende em seu artigo "Liberdade
de opinião e disciplina partidária", publicado em
12/12/03 na Folha, é da mais alta relevância: "Se
a vida dos partidos deve ser orientada por um bom e democrático
estatuto normativo, então um partido, principalmente quando adota
decisões legítimas em suas instâncias dirigentes,
não pode se submeter ao arbítrio da vontade individual
de poucos. Isso significaria derrogar o próprio conceito de partido
político". Se a própria definição de
partido diz que se trata de uma associação de cidadãos
que se ligam em vista dos interesses da pólis, está desde
logo rejeitada a tese de que venha a ser o lugar do arbítrio.
Dada a definição, segue-se a inferência: os radicais
do PT têm participado ativamente das discussões sobre as
reformas constitucionais; tendo sido derrotados em eleições
democraticamente conduzidas e, não cumprindo a vontade coletiva,
devem ser simplesmente excluídos da associação.
Raciocínio perfeito se não fosse apenas formal. Um partido
é uma associação em vista de um projeto político,
cabendo-lhe exprimir determinados interesses dos cidadãos e modificar
aspectos importantes de suas formas de vida, de modo tanto mais profundo
quanto vem a ser mais radical. Ora, o PT, reconhecendo os novos desafios
do capitalismo contemporâneo e as novas (e antigas) necessidades
da sociedade brasileira, mudou substancialmente seu projeto. Convém
até mesmo dizer que está reformando sua constituição
e refazendo tacitamente o contrato originário que lhe deu origem.
Não assiste apenas a um choque de opiniões e de estratégias
sobre as novas posições, mas coloca em discussão
o porquê de as pessoas se associarem. Desse modo, manter-se fiel
às teses antigas não significa romper com a maioria, mas
simplesmente continuar associando-se a ela segundo o contrato original.
Nos partidos, as minorias se submetem à maioria desde que não
tenham sido postos em dúvida certos pontos comuns a todos os
militantes. Convenhamos: ideologicamente o PT é hoje um espelho
partido, incapaz de conciliar diversos modos de agir politicamente.
Mas, como partido, a despeito de abrigar diferenças radicais,
não pode abandonar seu projeto de transformar a sociedade e,
por conseguinte, de se transformar a si mesmo. Nesse processo, o critério
para julgar a indisciplina partidária torna-se vago, pois não
se sabe precisamente quem está cometendo a infração,
o grupo dominante ou os dissidentes. Em toda constituição
democrática existem cláusulas pétreas que levam
o Poder Judiciário a anular leis que foram votadas democraticamente
pelo Congresso Nacional.
Quando um partido refaz seu projeto original, é ele mesmo que
passa a desenhar os limites, aglutinando seus próprios associados.
Nessas condições, será democrático impor
a todos decisões tomadas pela maioria quando cada associado está
refazendo seu próprio perfil?
Impondo-lhes a pena máxima em vez de outras punições,
a direção do partido está dizendo a eles e à
sociedade que os chamados infratores deixam de ser companheiros, que
perderam o elo básico que os unia anteriormente.
Esse corte não é questão de democracia, mas de
convencimento. Numa associação política, a disciplina
também é questão política a ser exercida
conforme valores e circunstâncias. Cabe aos rebeldes julgar até
que ponto podem continuar marginais, sofrendo as punições
cabíveis, e avaliar o momento de ajustar-se ao novo projeto ou
abandonar o PT em nome da fidelidade às suas convicções
e aos seus eleitores. Nessas condições, a mera expulsão
corre o risco de tolher a diversidade, impor um padrão vindo
de cima e vir a ser mais um sintoma de burocratização
institucional.
Como você sabe, não tenho simpatia por esse grupo dito
radical e não os defendo porque assume posições
tradicionais que eram do partido antes do segundo turno das eleições
presidenciais; um partido que não muda se esclerosa. A questão
é outra e diz respeito às regras da democracia interna
de uma associação política. No caso de mudança
constitucional, temos outro exemplo de situação em que
certos juízos devem ser suspensos. Também não sou
petista nem estou ligado formalmente a qualquer partido, interessa-me
o desenvolvimento do sistema político brasileiro como um todo,
e me aproximo deste ou daquele partido da esquerda ou do centro que
me parece trazer no momento a luz da renovação e justiça
social.
A vitória do PT nas últimas eleições foi
fruto de uma enorme aspiração por mudanças. Até
agora, não me parece que o governo Lula tenha correspondido a
essa esperança. Haverá também o PT de afogar o
novo em nome de um princípio formal? Ou pretenderá ele,
depois de ter chegado ao poder, não ser mais do que o braço
partidário desse poder?
José Arthur Giannotti, 73, é professor
emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento)
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