ILHAS DE CALOR AFASTAM CHUVA DE REPRESAS

Mariana Viveiros


Em quase todos os verões, as cenas são as mesmas em São Paulo: enchentes de um lado e reservatórios vazios de outro. A explicação também é recorrente: chove no lugar "errado", ou seja, na cidade, não nos mananciais. Mas por que a chuva é "atraída" para o centro urbano e não chega -ou chega com menos intensidade do que o necessário- às represas?
A explicação, segundo especialistas, está no efeito das ilhas de calor formadas pelas excessivas pavimentação e verticalização em áreas específicas da metrópole. Que elas são responsáveis por chuvas mais intensas e localizadas em grandes áreas urbanizadas de todo o mundo, não é novidade. Mas, para a Grande São Paulo, as conseqüências são mais perversas: as ilhas de calor "seqüestram" a umidade vinda do mar e afastam as chuvas dos reservatórios.
Um volume menor de precipitação dificulta ainda mais a recuperação dos sistemas de abastecimento, que operam sem nenhuma folga e sofrem com desperdícios e consumo excessivo, de um lado, e perdas na rede, de outro. Em São Paulo, as ilhas de calor estão exatamente na rota da brisa marítima que traz a umidade fundamental para fazer chover. O ar úmido entra na região metropolitana pelo sudeste, mas não costuma ir muito longe porque encontra, na fronteira entre as regiões central e leste da capital, temperaturas que, no verão, chegam a ser 5C superiores às registradas nos mananciais das represas Billings e Guarapiranga (zona sul) e do sistema Cantareira (zona norte).
As partículas do ar quente têm mais energia cinética (de movimento), portanto tendem a se deslocar mais e com maior rapidez para as camadas altas da atmosfera, carregando consigo a umidade da brisa. Lá, ao entrar em contato com temperaturas mais frias, a umidade se condensa e causa as chuvas fortes.

Instabilidade
Quanto mais quente o ar, mais ele sobe. Quanto mais ele sobe, maior a instabilidade atmosférica, ou seja, maior a tendência a temporais, raios e granizo. "Brisa marítima e ar quente formam uma mistura explosiva", resume Augusto José Pereira Filho, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas do IAG/USP (Instituto Astronômico Geofísico da Universidade de São Paulo). Estudo realizado por Pereira Filho, Reinaldo Haas e Tércio Ambrizzi (os dois últimos também do IAG) concluiu que, entre 1999 e 2002, 60% das chuvas que causaram enchentes na capital paulista foram causadas pela combinação de brisa marítima e ilhas de calor. Quanto mais umidade é consumida nas tempestades, menos sobra para se deslocar e provocar chuvas nos extremos norte e sul.
As chuvas intensificadas pelas ilhas de calor costumam atingir as próprias ilhas ou se deslocar um pouco por causa dos ventos. Em São Paulo, há ventos que vêm do noroeste que costumam empurrar as tempestades ainda mais para o leste e para a região sudeste. Segundo Pereira Filho, os reservatórios de São Paulo se beneficiam mais das frentes frias do que das típicas chuvas de verão.
Anteontem, a situação dos dois principais sistemas de abastecimento da Grande São Paulo era a seguinte: Cantareira, 5,9% da capacidade máxima e chuva acumulada de 74,3 mm (contra uma média de 109 mm para fevereiro); Guarapiranga, 34,3% da capacidade máxima e chuva acumulada de 85,6 mm (contra uma média de 196,2 mm em fevereiro). Cada milímetro equivale a um litro de água em um metro quadrado.

Matemática da "atração"
A "atração" que a ilha de calor exerce sobre a chuva fica clara nos dados do radar meteorológico. Avaliando imagens de 12 episódios de chuva entre fevereiro e março de 2001, o professor Augusto José Pereira Filho constatou que, em todos os dias, choveu mais nas zonas centrais e leste do que nas regiões norte e sul. A diferença entre a precipitação acumulada variou de 25 a 100 mm.
Segundo medições da Defesa Civil do Município, em janeiro, a chuva acumulada nos distritos que estão no centro da ilha de calor superou em quase 300 mm os volumes registrados nos que ficam mais próximos aos principais mananciais.
Na subprefeitura da Mooca (zona leste), choveu 228,1 mm, na Vila Prudente (zona leste), 300,6 mm, e na Sé (centro), 262,8 mm. Já em Perus (zona norte), o acumulado foi de 192 mm, na Capela do Socorro (zona sul), de 134,8 mm e no Campo Limpo (zona sul), de 181,1 mm.

 
SP AQUECEU 50% MAIS QUE NY
Entre 1900 e o ano 2000, a cidade de São Paulo sofreu um aquecimento de 1,2C. O aumento foi 50% maior que o registrado na cidade de Nova York (EUA) no mesmo período -0,8C. A comparação mostra que, embora o aquecimento seja uma conseqüência inevitável da urbanização, pode ser reduzido por meio do planejamento, diz a geógrafa Magda Adelaide Lombardo, professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Rio Claro e da pós-graduação da USP e uma das primeiras pessoas a estudar ilhas de calor no mundo. "As ilhas de calor resultam do desequilíbrio na proporção entre áreas verdes e água de um lado, asfalto e concreto de outro. São Paulo cresceu canalizando córregos, desmatando e se verticalizando", completa. As causas do problema, portanto, são conhecidas: altas concentrações de edifícios, vias pavimentadas e superfícies como asfalto e concreto, que retêm calor; muitos carros que, consumindo combustíveis, liberam energia; poluição atmosférica, que também favorece a retenção de calor; falta de vegetação e de espelhos d'água.
Toda essa ação modificadora encontra a reação natural na forma das tempestades, diz Augusto José Pereira Filho, do IAG/USP. "O ambiente fica superaquecido, como se fosse uma fogueira. A natureza tentar apagar a fogueira com a chuva." A solução para o problema? "Revegetar a cidade."
Falar é fácil, fazer nem tanto. O Plano Diretor de São Paulo prevê o aumento de áreas verdes nos fundos de vale e ao longo de rios e córregos, com os parques lineares, explica Ivan Maglio, da Secretaria do Planejamento. Mas ainda não há nenhum parque linear concluído. Só um novo parque municipal foi inaugurado -outros três devem ser entregues neste ano-, e a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente construiu seis praças pelo Procav (programa de canalização de córregos). Outra ferramenta importante é a nova lei de zoneamento, que ainda está em discussão na Câmara. Ela aumenta a porção de área verde por empreendimento imobiliário de 5% para 15%. Nos planos diretores regionais, o percentual chega a 30% nos mananciais. "Podemos fazer de São Paulo uma nova cidade, mas não é fácil. Por que você acha que a lei de zoneamento e os planos regionais ainda não saíram?", pergunta o secretário do Verde e do Meio Ambiente, Adriano Diogo.

 
SÃO PAULO TEM 77 MICROCLIMAS DIFERENTES

Em 1554, o planalto de Piratininga, onde Anchieta construiu o colégio que deu origem a São Paulo, era uma região de temperaturas estáveis, mais fria, onde, além dos pinheiros (daí o nome do rio que corta a cidade), predominavam quatro climas que se dividiam, por causa de fatores como relevo, altitude e circulação dos ventos, em 26 microclimas. Passaram-se 450 anos, e os paulistanos hoje vivem num mosaico de 77 microclimas (restritos a áreas específicas) que reflete uma urbanização e ocupação do solo desigual, desordenada e ambientalmente despreocupada.
A divisão está no Atlas Ambiental do Município de São Paulo, feito pelas secretarias municipais do Verde e do Meio Ambiente e do Planejamento, com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Ela foi além do conceito tradicional de clima, somando a ele características sociológicas. Na atualização do mapa dos climas naturais, foram fundamentais fatores como o tipo dominante de construção (vertical ou horizontal), a presença de bairros-jardins, a predominância de comércio ou indústria, a existência de importantes vias de tráfego, favelas, grandes parques ou áreas de proteção ambiental (APAs).
As principais distinções entre os microclimas dizem respeito à temperatura e ao conforto térmico (muito calor no verão e muito frio no inverno). "Mas as pessoas também podem sentir diferenças na ventilação, na umidade e na concentração de poluição", diz Patricia Marra Sepe, chefe da assessoria técnica da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente.

Grande unidades climáticas
Para efeito de climas urbanos, a cidade foi dividida em quatro grandes unidades, mais homogêneas no tipo de ocupação e nos atributos naturais. No interior delas, ocorrem as subdivisões. A Unidade Climática Urbana Central abrange todo o centro expandido, mais distritos que estão fora do anel formado pelas marginais Tietê e Pinheiros, como Morumbi, Butantã, Pirituba, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Guilherme e Santana. Nela, os principais fatores condicionantes do clima são as densidades de prédios, carros e atividades econômicas. É dentro dela que estão as ilhas de calor.
Na Unidade Climática Urbana Periférica estão as regiões mais afastadas do centro, onde se concentram as favelas e os conjuntos habitacionais populares, nos extremos leste, norte e oeste, além dos distritos à beira das represas Billings e Guarapiranga. Quem vive nesses locais enfrenta principalmente o desconforto térmico. À Unidade Climática do Urbano Fragmentado pertence o extremo sul da cidade (Marsilac e Parelheiros), onde a ocupação é rarefeita e predomina um clima mais frio e úmido -o mesmo que domina a Unidade Climática Não-Urbana, onde está apenas a APA Capivari-Monos, também no extremos sul da cidade.
Para chegar ao mapa dos 77 microclimas, o geógrafo José Roberto Tarifa, professor aposentado da USP, sobrepôs no mapa dos climas naturais os dados de uso e ocupação do solo, além de informações sobre qualidade do ar, dados resultantes de medições de temperatura in loco e imagens de satélite do calor superficial.

 
EUA TENTAM EVITAR SUPERAQUECIMENTO

Não é só São Paulo que sofre as conseqüências das ilhas de calor. O problema aflige também grandes cidades do mundo como Atlanta, Dallas, Houston e Nashville (nos EUA), Tóquio (Japão) e Cidade do México. Ainda que esses centros urbanos não enfrentem o paradoxo das enchentes versus represas vazias, eles sofrem efeitos do superaquecimento na deterioração da qualidade do ar.
Isso porque, no inverno, as ilhas de calor costumam favorecer inversões térmicas (quando uma camada de ar quente prende uma camada de ar mais frio próxima à superfície), o que impede a dissipação dos poluentes. Embora o fenômeno ocorra também na capital paulista, não há ainda estudos que avaliem o seu peso no agravamento da poluição.
Nos EUA, a EPA (agência ambiental) mantém com a Nasa (agência espacial) um projeto-piloto para avaliar o problema das ilhas de calor nas cidades de Salt Lake City (Utah), Sacramento (Califórnia) e Baton Rouge (Louisiana), com o intuito de buscar soluções locais que possam ser depois aplicadas em larga escala.
A avaliação das instituições é que, apesar de as ilhas de calor existirem em muitos centros urbanos, sua intensidade varia conforme as características específicas de cada um deles -a exemplo do clima, da topografia, do nível e do padrão de urbanização e da localização geográfica. Por isso as estratégias mais eficazes para reduzir os efeitos do aquecimento também devem obedecer às particularidades regionais. Para tanto, o projeto combina o resultado da análise de dados de satélite e aeronaves espaciais da Nasa com o conhecimento adquirido a partir de reuniões das quais participam diversas entidades de cada cidade envolvida (ONGs, técnicos, representantes das indústrias e órgãos governamentais locais) para identificar que medidas devem ser tomadas para combater as ilhas de calor. Pesquisas e trabalhos de campo indicam que plantar árvores em locais estratégicos e aumentar a reflexividade de prédios e superfícies pavimentadas podem ser alternativas. O que se quer saber é o efeito real dessas ações em diferentes realidades urbanas.

Chuvas
No caso dos temporais, a Nasa confirmou em 2002, por meio de um satélite que mede chuva, que as precipitações de verão são mais intensas em cima das grandes cidades por causa das ilhas de calor.
Segundo Augusto José Pereira Filho, pesquisador do IAG/USP, no norte do Estado de São Paulo também já existem locais mais quentes que a média, mas, como a região está muito distante do mar, que é a principal fonte de umidade, não sofre tanto com as chuvas fortes no verão.

 
 
 



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