A CALIFÓRNIA E O NORDESTE


 
            "Sábado passado, revisitei o vale do Napa, na Califórnia. Em1984, secretário-geral do Ministério da Fazenda, estivera na regiao com outros funcionários federais e governadore do Nordeste. Fomos estudar projetos de irrigacão no oeste norte-americano.
           O vale do Napa dista uma hora de automóvel de San Francisco. Impressiona pelo vigor de sua economia, pela riqueza conspícua e pela beleza dos parques e vinhedos.
           Dali saem excelentes vinhos das melhores cepas. Turistas e moradores locais se apinham em sessões de degustacão, visitas às fábricas e refinados piqueniques.
           A comparacão com o Brasil é inevitável. O trajeto é árido como os sertões nordestinos. O panorama muda subitamente nas áreas irrigadas, tal qual nos cenários do nosso vale do São Francisco.
           A Califórnia é um sucesso e tanto. Até 1848, não passava de um solitário posto avancado uma imensa região semidesértica, quando sua quietude foi interrompida pela descoberta do ouro.
           A agricultura nos vales férteis, mesmo sob  a adversidade do clima (como no semi-árido nordestino), foi o refúgio para muitos dos que não conseguiram sucesso no garimpo.
           No final do século, San Francisco enfrentou oito anos de seca. Nas chuvas, as enchentes destuíam anos de trabalho. Irrigar era a saída para resolver os dois problemas.
           Em 1902, o governo federal criou o "Bureau of Reclamation", que inspirou a nossa Inspetoria Fedceral de Obras contra as secas em 1999 - Ifocs, depois transformada em departamento nacional (Dnocs) em 1945.
           O trabalho do birô viabilizou a irrigacão no oeste, principalmente na Califórnia, na qual se cultivam hoje mais de 200 espécies e de onde se origina um terco da oferta nacional de frutas e vegetais industrializados.
           Em 1947, a Califórnia  se tornou o maior produtor rural dos EUA. Em 1965, suplantou Nova York como o Estado mais rico da federacão.
           Há outros fatores que explicam esse êxito: a descoberta do petróleo em 1895 em Los Angeles; mais recentemente, a indústria de alta tecnologia do vale do Silício, e, óbvio, a excelência de suas universdades  e o "ethos" capitalista de agir.
           A agricultura foi, contudo, um passo fundamental. Desenvolvi o tema do livro "Desafios da Política Agrícola" ("Gazeta Mercantil"/ CNPq, São Paulo, 1985).
           No Brasil , quase um século de obras contra as secas beneficiou mais a burocracia e os políticos fisiologistas do que a irrigacão do semi-árido. Com os projetos privados, a área ali irrigada corresponde a míseros 500 mil hecteres, 10% da californiana.
           No retorno, li a recente obra do Fórum Nacional ("O rela, o crescimento e as reformas", João Paulo R. Velloso, coordenador, Rio de Janeiro, José Olympio, 1996).
           Lá estava, por coincidência, o excelente artigo de Roberto Cavalcanti e Gustavo Maia, dos melhores que já li sobre o drama do nordeste ("Os desafios de uma dupla insercão").
          Os autores crêem que a região tem futuro. Ela dispõe de trunfos para viabilizar o seu desenvolvimento, entre os quais um PIB semelhante aos da Venezuela e Grécia.
          A transformacão produtiva, a partir dessa base, poderia ocorrer prioritariamente na reestruturacão e especializacão industrial, na modernizacãoagrícola e industrial e na expansão do turismo e dos servicos modernos.
          Os desafios são, todavia, enormes. Será preciso, afirmam, uma revolucão nos recursos humanos e a formacão de uma mentalidade moderna, isto é, "a aquisicão de uma nova cultura".
          Sugerem mudar a gestão dos incentivos fiscais. O diagnóstico sobre a Sudene é preciso e duro:
o órgão padece de um "congelamento no tempo de muitas formas do pensar e do agir institucionalmente, cada vez mais inadequados às circunstâncias emergentes".
          Eles não mencionam a questão da mentalidade das eleites nordestinas e de parte expressiva de sua classe política. Sua atitude quinhentista, paternalista e patrimonialista constitui sem dúvida sério obstáculo para vencer o inaceitável grau da pobreza regional.
          O artigo é um alento. Estimula a refletir sobre a idéia de que o Estado, mesmo quebrado, ainda terá  papel irrecusável no desenvolvimento nordestino. Deve-se todavia, mudar radicalmente a forma de fazê-lo. Exemplos não faltam no sucesso californiano."
 

Mailson da Nóbrega, 54 , ex-Ministro da Fazenda (Governo José Sarney)

Folha de São Paulo, Opinião Econômica, 15/11/1996, pg. 2.2