Diferentemente
da retórica dos debates presidenciais dos EUA e daquilo que dizem
vários analistas, não se deve exagerar a diferença
entre Bush e Kerry em temas econômicos fundamentais para o mundo.
Há pelo menos três questões importantes. A primeira
delas é a capacidade de restringir as ações do
terrorismo internacional e diminuir a tensão no Oriente Médio.
Isso é condição necessária para que o mercado
de petróleo volte a seguir, ainda que minimamente, a lei da oferta
e da demanda.
No caso de uma vitória de Kerry, não seria realista esperar
uma rápida retirada de tropas e a adoção imediata
de uma estratégia multilateral afinada com as Nações
Unidas. Lembre-se de que no Vietnã foi uma administração
democrata de Lyndon Johnson (1963-69) que aprofundou o envolvimento
dos EUA na guerra.
Em relação ao Iraque, Kerry adotaria um discurso menos
agressivo, mas não abriria mão do poder de decisão
unilateral dos EUA nas questões militares. Por sua vez, Bush
não teria o apoio e as circunstâncias peculiares do imediato
pós-11 de Setembro, que levaram às ações
no Afeganistão e no Iraque. A segunda questão diz respeito
à capacidade de restaurar o equilíbrio nas contas públicas,
comprometido pelo aumento de despesas militares, por cortes de impostos
e por rombos previstos no sistema de Previdência. Um eventual
agravamento do desequilíbrio fiscal do Tesouro americano e o
conseqüente aumento em suas necessidade de financiamento preocupam
na medida em que pode provocar uma elevação da taxa de
juros no mercado internacional e para os países emergentes, em
particular.
Uma análise fria dos programas de Kerry e de Bush revela que
nenhum dos candidatos apresentou até agora uma solução
clara e consistente de como a questão fiscal será enfrentada.
A terceira questão diz respeito às relações
comerciais e ao combate ao protecionismo. Nesse ponto, os republicanos
vêm se tornando tão protecionistas quanto os democratas.
O uso abusivo da legislação antidumping e de diversas
restrições comerciais estranhas à legislação
da OMC (Organização Mundial do Comércio) tem sido
uma das características da administração de George
W. Bush.
Nada indica que uma administração Kerry seria diferente
no tocante às restrições ao comércio. Pelo
contrário, a julgar pelo discurso recente do candidato crítico
à internacionalização de componentes por parte
da indústria dos EUA (o chamado"outsourcing", na expressão
em inglês), o candidato democrata seria ainda mais protecionista.
O liberalismo pregado para as diferentes áreas de política
pública não vale para o mercado internacional. Tampouco
a liberdade de circulação de capitais é estendida
para a mão-de-obra. Tanto
Bush quanto especialmente Kerry querem mais restrições
ao ingresso de imigrantes estrangeiros.
Tais semelhanças entre Bush e Kerry, pelo menos naquilo que importa
mais diretamente para a economia mundial, não retiram a importância
da escolha de 2 de novembro. Apenas relativizam as diferenças
entre as duas plataformas. Não é verdade, como quis fazer
crer Bush no debate de quarta-feira, que Kerry estaria na extrema esquerda
do Partido Democrata. A diferença ideológica entre Nixon
e McGovern em 1972 era maior. Na mesma semana do último duelo
entre Kerry e Bush no Arizona, foram divulgados os nomes dos ganhadores
do Prêmio Nobel de Economia deste ano. Foram escolhidos os economistas
Edward Prescott, que leciona no mesmo disputado Arizona, e o
norueguês Finn Kydland.
Uma das contribuições desses estudiosos foi o desenvolvimento
da noção de inconsistência dinâmica de política.
Trata-se de uma idéia simples, freqüentemente utilizada
em política monetária, mas de aplicação
geral. O poder discricionário dos responsáveis pela política
econômica permite muitas vezes que sejam adotadas medidas de curto
prazo que não são coerentes com os objetivos de longo
prazo. Pode-se dizer ao menos que os programas econômicos de Kerry
e Bush são didáticos. Permitem revelar, sem muito esforço,
um sem-número de exemplos de inconsistências dinâmicas
de política.
Gesner
Oliveira, 48, é doutor em economia pela Universidade
da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor
da Tendências e ex-presidente do Cade. |