Antigamente
a palavra "revolução" já saía
da boca atirando. Era dizer "revolução" e esperar
pelo barulho das balas. Com a morte da esquerda, a palavra depôs
as armas. Tornou-se inofensiva. "Ideologia" é outro
vocábulo em crise. Costumava escorrer pelos cantos da boca, pingando
fronteiras no chão -esquerda de um lado, direita do outro. Com
o sumiço das linhas demarcatórias, Lulas acordaram do
lado de Sarneys, Paloccis incorporaram Malans, Dirceus tricotaram com
Valdemares.
Saudosista, o Incra resolveu patrocinar um gesto em defesa dos termos
em extinção. Acaba de produzir um documento em cujas folhas
palavras como "revolução" e "ideologia"
compartilham a ilusão de que ainda vivem.
O texto trata da reestruturação da autarquia incumbida
de gerir a reforma agrária. Com 31 páginas, é um
latifúndio redacional. Improdutivo, dedica-se ao cultivo de abobrinhas.
Prega a adaptação da engrenagem estatal a um novo "padrão
político-ideológico".
"É imprescindível uma revolução organizativa",
anota o texto. "A grande maioria de nossas instituições
públicas tem estado estagnada, sem mudanças significativas
durante os últimos 50 anos [...] Requer-se uma revolução
organizativa, e nada menos que uma revolução." Algo
que inocule na burocracia o germe da "convulsão intermitente".
A "revolução" no Incra está a cargo de
pessoas escolhidas, conforme confissão exposta no documento,
em processo que privilegiou "a militância política,
sem avaliação quanto à experiência em gestão".
Na quinta-feira, Lula reafirmou na TV o seu compromisso com a reforma
agrária. O Incra acha, porém, que a empreitada depende
da temperatura do caldeirão social. Quanto mais quente, melhor.
"As manifestações de massa, de forma organizada,
são o vetor central com vistas a atingir os objetivos."
Embora ainda não saiba o que fazer para salvar 2003, o Incra
aventura-se a traçar cenários para 2010. Valendo-se de
quiromancia própria dos economistas, os sábios agrários
esboçaram três cenários para o final da década.
Os acertos comerciais com os EUA e a pujança do agronegócio
conspiram a favor do "cenário negativo". A adesão
do Brasil "à Alca e a pressões das classes dominantes
direcionam a produção agrícola para o mercado exportador".
Mantida a tendência de "ampliação maciça
de grandes propriedades rurais, com alto grau de mecanização",
o êxodo para as cidades será tonificado, gerando mais desemprego
e concentração de renda. Para o Incra, o próprio
sistema político está sob risco. O sufoco econômico
pode corroer "a arrecadação necessária à
implementação dos programas sociais indispensáveis
à manutenção do regime".
Nos papéis do Incra, o "cenário positivo" passa
pelo fortalecimento da pequena propriedade rural e pela mobilização
da "sociedade civil" por "serviços básicos".
Fortalecidos, os ruralistas miúdos produziriam alimentos para
o consumo interno. Reunidos em cooperativas, exportariam a produção
excedente.
No "cenário intermediário", a reforma agrária
avançaria, mas de modo "insatisfatório". Ocupado
com outras reformas, o Congresso rebarbaria a aprovação
de novas leis agrárias. Às voltas com o esforço
para recuperar a economia, "a agenda do governo ainda não
dispensaria à reforma agrária o nível de prioridade
ideal".
No melhor estilo oposicionista, o texto do Incra amaldiçoa a
política monetária de Brasília. Anota que os "juros
altos geram mais desemprego nas cidades, por consequência diminuem
o consumo de alimentos, encarecem os insumos, restringem o uso de recursos
públicos para apoio à produção agrícola
[...]".
Lula deveria desperdiçar um naco de seu tempo na leitura do documento
do Incra. Talvez concluísse que, envenenada por uma ideologia
"démodé", a repartição consolida-se
como o desnecessário tornado irreversível.
A quem interessar possa, a íntegra do texto do Incra pode ser
lida no seguinte endereço eletrônico: www.folha.com.br/032261.
Um aviso: o documento é de difícil deglutição.
Contém muitos trechos confusos, escritos num idioma peculiar,
o "incrês".
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