O debate sobre a crise energética que estamos
vivendo e a melhor forma de enfrentá-la tem dominado a mídia nestes últimos dias. Sua intensidade
colocou questões relevantes como CPIs e cassações de mandatos no Senado em posição
secundária de importância. Alguns políticos da oposição têm defendido a
tese de que o fantasma dos apagões foi usado, deliberadamente, pelo
governo como forma de desviar a atenção da opinião pública. Para os mais radicais,
até a existência de uma real crise no fornecimento de energia elétrica é colocada em
dúvida. Deixando de lado a incrível capacidade de nosso maior partido da oposição de
fazer análises erradas, gostaria
de refletir sobre as causas da crise, real, do colapso de nosso sistema energético. Para tanto vou utilizar-me
dos ensinamentos de um antigo professor da Escola Politécnica da USP, com quem aprendi como proceder diante
de um problema grave como o que enfrentamos hoje. O professor Rui Aguiar da Silva Leme, responsável pela
implantação do curso de engenharia de produção na
Poli, foi uma das pessoas que mais marcaram minha formação profissional. Em suas aulas aprendi uma
metodologia eficiente de como enfrentar o grande desafio de um engenheiro, que, segundo ele, é o de solucionar
problemas concretos no dia-a-dia de todos nós. O primeiro passo para enfrentar um desafio como a crise da
energia de hoje, dizia ele, passa pela identificação correta e detalhada do que chamava de "qual
é o problema a ser enfrentado?". Tenho certeza de que o leitor desta coluna vai reagir da mesma forma
que eu e meus colegas da turma de 1966 reagimos quando o professor Leme, pela primeira vez, fez essa pergunta em
classe: um sentimento de estar sendo vítima de uma enganação. Ao longo da minha vida profissional,
tive inúmeras ocasiões em que usei esse método, com total sucesso. Não o abandonei
nunca mais e posso dizer que, na medida em que a experiência de viver vai se incorporando a essa metodologia,
ela vai ficando cada vez mais eficiente.
No caso da crise de energia que atinge o Brasil, a questão do professor Leme nos leva a várias respostas
pelo simples fato de que temos de enfrentar, ao mesmo tempo, vários problemas. Tentar resolvê-los
como um só é um caminho certo para o fracasso. Vou procurar nesta coluna de hoje definir o que me
parece ser a questão de fundo desse problema. Na próxima semana vou tratar
dos problemas conjunturais, de curto e médio prazo, que vamos viver nos próximos meses por conta
do período de estiagem no Centro-Sul. Procurarei também alertar o leitor da Folha para as falsas
análises que estão associadas à escassez de energia elétrica. Essa separação
ganha importância na medida em que no debate atual que vivenciamos temos presentes valores subjetivos como
ideologia, combate político e disputa eleitoral. A questão central das dificuldades que estamos enfrentando
hoje decorre do fato de que a oferta de energia elétrica no Brasil não acompanhou, ao longo dos últimos
anos, o crescimento da demanda. Mais uma vez corro o risco de ser considerado pelo leitor superficial na minha
análise. Mas a resposta a essa constatação é que nos permitirá entender as origens
da crise de hoje, primeiro passo, segundo Rui Leme, na busca de uma solução definitiva para a questão
da falta de energia elétrica. Essa interação falha entre consumo e oferta ocorre
porque o setor de geração e transmissão de energia elétrica está, quase que
totalmente, nas mãos do setor público. As decisões de investimentos são do governo,
que não tem agilidade e competência para reagir em suas ações aos sinais emitidos pelas
forças de mercado. Além dessa falta de sintonia com a dinâmica privada que conduz nossa economia
e sociedade, as decisões de investimento estão sujeitas a restrições orçamentárias
muito fortes, principalmente depois que a responsabilidade fiscal foi incorporada como valor essencial do Estado
brasileiro. Mesmo quando há por parte dos responsáveis pelo setor uma leitura correta do equilíbrio
entre oferta e demanda, a falta de recursos
disponíveis impede uma ação mais efetiva. Essa limitação foi agravada pelo fato
de que a tecnocracia da Eletrobrás acostumou-se, por várias razões que não vou aqui
comentar, aos megaprojetos hidroelétricos, em detrimento de unidades menores, que dão mais flexibilidade
de planejamento e exigem menos recursos. Outro problema que explica essa relação frágil entre
demandas do mercado por energia e a ação do governo como ente de planejamento do setor é o
mecanismo centralizado de formação de preços. Sem que a dinâmica de oferta e procura
-via concorrência e flutuação de preços- funcione, é quase impossível
trazer racionalidade ao sistema. Essa falha foi particularmente
perversa a partir do momento em que o custo marginal das novas unidades de geração passou a subir
de forma importante. Outro fator que reforçou ainda mais esse caráter irracional do sistema de preços
foi a existência de uma série imensa de subsídios cruzados entre usinas eficientes e unidades
deficitárias. A utilização do dólar como moeda de pagamento do setor, para viabilizar
o autofinanciamento de Itaipu, tencionou ainda mais o mecanismo de preços. No fundo, temos convivido com
um sistema soviético dos anos 50 em uma economia de mercado moderna como a brasileira desta virada de milênio.
E o que é pior: nos últimos anos esse sistema altamente centralizado foi
comandado por pseudoliberais baianos. E foi justamente a tentativa desastrada do governo FHC
de mudar esse inviável desenho de nosso setor elétrico que antecipou uma crise que alguns técnicos
previam iria acontecer um pouco mais tarde. Mas isso é uma outra história...
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Luiz
Carlos Mendonça de Barros,
58, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura.
Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
Folha de São Paulo, 18 de maio de 2001, p.B.2.
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