REFORMA TRIBUTÁRIA AMEAÇA ICMS ECOLÓGICO

Mariana Viveiros

Porque não incorpora critérios ambientais, ameaça um dos instrumentos fiscais de preservação mais bem-sucedidos do país e rejeita outro que estimularia o cumprimento das leis de conservação, a proposta de reforma tributária do governo Lula representa o desperdício de uma enorme oportunidade de incentivar o desenvolvimento sustentável e valorizar os recursos naturais do Brasil.
A avaliação é de Roberto Smeraldi, 43, presidente do braço brasileiro da ONG internacional Amigos da Terra e líder da campanha Reforma Tributária Sustentável, que envolve as maiores entidades ambientalistas do país, além de 19 deputados federais de quase todos os partidos.
O grupo expõe suas críticas, preocupações e propostas na página na internet www.reformatributariasustentavel.org
Pelo site também é possível mandar cartas de reclamação para o relator da proposta, Virgílio Guimarães (PT-MG). "Já foram milhares", afirma Smeraldi.
Leia a seguir trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.

Folha - Qual a importância de uma reforma tributária para as questões ambientais?
Roberto Smeraldi - A reforma é muito importante para o ambiente, e o ambiente é uma grande oportunidade para a reforma. Nós temos avançado muito no arcabouço legislativo da área ambiental, mas nossos instrumentos ainda se limitam ao comando e ao controle. Eles não premiam nem punem comportamentos, eles não direcionam o cidadão para o que é mais interessante para a sociedade como um todo. Os instrumentos econômicos, dentre os quais os instrumentos tributários, talvez sejam os mais efetivos: podem contribuir muito para que a política ambiental passe do mero comando e controle para uma política mais seletiva e norteadora.
Folha - E o inverso? De que forma o ambiente pode ajudar numa reforma tributária?
Smeraldi - O governo não quer abrir mão da sua arrecadação, e o pessoal da avenida Paulista não quer que aumente a carga tributária. Para não aumentar nem baixar, você tem a opção de deixar tudo como está ou de reorientar a carga tributária. Há uma coisa sobre a qual concordamos todos: a folha de salários deve ser desonerada. Mas, para ela ser desonerada, alguma coisa vai ter de ser onerada. Temos aí um aliado, porque os recursos [naturais] não são tributados e, portanto, podem passar a ser tributados. Há ótimas oportunidades nos recursos não-renováveis [petróleo, carvão mineral, minérios]. Outra área é tudo aquilo que constitui resíduo não-reciclável ou não-reciclado.
Folha - E, na prática, como está a atual proposta de reforma tributária em relação ao ambiente?
Smeraldi - Entre os princípios gerais da ordem econômica, na Constituição, está o ambiental. Isso dá um lastro para qualquer tipo de medida que possa ser tomada em nível infraconstitucional. Agora, estabelecer que o ambiente é um dos grandes princípios norteadores do ordenamento econômico e não traduzir isso em nem sequer um critério ambiental para um dos impostos que existem é realmente uma contradição. Você coloca a questão lá em cima, mas esquece o princípio na hora em que você discute a prática. Um ponto positivo, mas extremamente específico, é o que acrescenta que desastres ambientais possam justificar empréstimos compulsórios federais.
Folha - E os pontos negativos?
Smeraldi - Um deles é a questão do ICMS ecológico, que é um mecanismo bem-sucedido, aplicado hoje em 12 Estados [inclusive em São Paulo]. Ele remunera com uma parcela a mais do Fundo de Participação dos Municípios as cidades que têm unidades de conservação em proporção significativa do seu território. O que ocorre é que esse mecanismo, daqui a cinco, seis anos, será alterado, e os Estados não terão mais a discricionariedade de alocar os recursos por lei própria. Eles não poderão mais estabelecer mecanismos de vantagem para determinados municípios. A regulamentação de um novo mecanismo será feita por lei específica. E a nova lei poderá estabelecer qualquer mecanismo. Você troca o certo pelo duvidoso.
Folha - E qual o problema em relação ao Imposto Territorial Rural?
Smeraldi - Da versão de julho do relatório da reforma, constava uma proposta para que áreas de preservação permanente -matas ciliares, topos de morro, encostas, onde você é obrigado por lei a manter a vegetação nativa- fossem excluídas da parte da propriedade sujeita ao Imposto Territorial Rural [ITR]. Isso foi removido na versão atualmente em votação. A arrecadação ITR é pífia do ponto de vista fiscal, e a eventual subtração das áreas de preservação permanente do cálculo seria realmente muito pouco significativa. Por outro lado, manter a cobrança contribui para acirrar aquele conflito tradicional com o produtor rural, que já existe.
Folha - O país perde uma oportunidade ambiental com a reforma?
Smeraldi - Estamos não só perdendo uma oportunidade ambiental, mas uma oportunidade de usar o ambiente em favor de uma política de desenvolvimento do país. Tradicionalmente as políticas ambientais, por serem de comando e controle, tendem a criar conflito. Nesse caso, seria possível ter o ambiente como um aliado para gerar desenvolvimento e riqueza, e o governo não aproveita esse gancho. Isso é, no caso do Brasil, talvez mais significativo do que em qualquer outro lugar, em razão do enorme patrimônio natural que o país tem.
Folha - Quais as propostas da Reforma Tributária Sustentável?
Smeraldi - Desonerar a folha de salários, compensando com taxas sobre recursos e resíduos; alterar o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] para que ele incorpore critérios ambientais; e criar a Cide [Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico] ambiental. Você poderia utilizar o princípio da Cide [que recai sobre os combustíveis] para onerar certos processos produtivos ou materiais. Outro instrumento que poderia ser estendido a questões ambientais é o dos royalties.
Folha - Elas foram apresentadas?
Smeraldi - As emendas que foram apresentadas [com as propostas] foram inviabilizadas, independentemente do conteúdo, um pouco por causa dessa postura de trator que tem o Congresso.
Folha - Por que, na sua opinião, o texto da reforma acabou neglicenciando a questão ambiental?
Smeraldi - Eu enxergo uma dificuldade grande da área econômica como um todo. Eu até diria que a reforma tributária nem é o exemplo mais gritante disso, há outros, como o PPA [Plano Plurianual], que está baseado numa visão quantitativa, e não qualitativa do crescimento, uma visão de que a infra-estrutura, por si só, garante o crescimento. Isso revela uma resistência forte da área econômica em absorver elementos de inovação, o que leva à não-incorporação de muitas propostas que existem dentro do próprio PT. Se você vê os programas antes da eleição, está tudo lá, o uso de instrumentos econômicos para a questão ambiental foi extremamente defendido.
Folha - Ainda há esperança de inserir o fator ambiental no texto?
Smeraldi - O Senado vai ter de entrar na discussão do mérito da reforma, por isso deverá ser mais difícil passar o trator.

RELATOR DIZ QUE PROJETO NÃO IGNORA AMBIENTE
Apesar de dizer que respeita e entende as reivindicações da campanha Reforma Tributária Sustentável, o deputado federal Virgílio Guimarães (PT-MG) discorda que o fator ambiental não seja contemplado no relatório da reforma tributária.
"Essa reforma será lembrada como ambientalista porque incorporou o fator ambiental aos princípios gerais do ordenamento econômico." Para ele, é esse o papel que cabe a uma emenda constitucional: ser enxuta, clássica e de cunho geral.
"Hoje, em relação ao IPI, o governo não é obrigado a seguir nenhum critério, mas, nos princípios gerais tributários está lá que todo imposto, agora, poderá obedecer a uma calibragem ambiental. Caberá, portanto, ao Executivo aplicar isso.
" E usa argumentos semelhantes em relação ao ICMS. "Mudamos o ICMS, derrubando o critério do VAF [Valor Adicional Fiscal] para a distribuição dos recursos, que não tem nada de ambiental. O resto
será feito por meio de lei específica."
Sobre a desoneração da folha de pagamento tendo como contrapartida a taxação de recursos naturais, ele disse que o texto da reforma tributária prevê a diminuição de impostos sobre os salários ao alterar a contribuição patronal à Previdência.




UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA