FOME
DE QUÊ? |
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Cláudia
Costin |
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UM DE MEUS projetos como secretária da Cultura
de São Paulo é formular e implementar uma política
cultural para o Estado capaz de atuar como elemento de inclusão
social. Recentemente, o poeta e tradutor Régis Bonvicino manifestou-se
contrariamente a essa tese. Oferece-me bela oportunidade de reafirmá-la,
embora grata pela abertura de debate com alguém a quem respeito
e admiro. A política cultural refere-se à forma e aos
instrumentos de intervenção do Estado na cultura. O poeta,
talvez por não ser especializado no campo das políticas
públicas, confunde-a com a cultura em si e até com a arte.
É claro que a cultura ou a arte não devem ser direcionadas
à inclusão social ou ao combate à violência,
mas o Estado, quando atua nesse campo, pode e deve fazê-lo. O
Estado atua na cultura para, entre outros pontos, garantir a todos (e
não só aos filhos das elites) os direitos culturais previstos
na Constituição, ou seja, o acesso ao que de mais belo
a humanidade produz e à livre expressão da criatividade.
Deve igualmente fomentar a produção cultural e, integrando
vários de seus órgãos ou secretarias, permitir
a solução de problemas que, por sua natureza, não
são restritos a um único setor. É o caso específico
da violência e da criminalidade juvenis. Estudos recentes da Unesco
mostram com clareza que, sem a intervenção do Estado,
criando oportunidades para jovens se destacarem e serem reconhecidos
por diferentes formas de expressão cultural, a violência
e o narcotráfico continuarão existindo e sendo, neste
início de século, fortes e vigorosos "casos de polícia".
Acredito que convivam no Brasil exclusões de todas as espécies,
entre elas a exclusão cultural, e que, ao assumir cargo público
no Brasil, o primeiro compromisso de um dirigente sério deveria
ser o combate à exclusão. O primeiro sonho, o de imaginar
que é possível acabar com a fome. Com a fome de comida,
de saúde, de educação, de acesso à cultura.
Fome zero, analfabetismo zero, desesperança zero _o administrador
público que não conserva o desejo sincero de favorecer
o acesso a bens e serviços antes interditos deve renunciar à
sua função. É quase um ato de censura impedir que
a cultura chegue a todos. Uma das manifestações de governos
totalitários é negar o acesso a produtos da cultura. É
suprimir uma voz. Fica-se apenas com a voz do Estado. No caso em debate,
aceita-se a exclusão como fatalidade. Violência é
com a polícia, cultura é com os poetas; é mais
ou menos o que se depreende da tese de Bonvicino (Ilustrada, 18.jan.2003).
Eu defendo o direito à transcendência, mas transcendência
para todos, não apenas para os letrados. Cresci e me tornei adulta
na década de 70. Foi quando se consolidaram a produção
e o consumo de bens culturais em mais ampla escala no Brasil. Uma consolidação
que teve início nos anos 60, mas que se firmou para valer na
década seguinte. O consumo de livros, revistas e filmes cresceu.
A influência dos anos 60 esteve presente em tudo o que se viveu
então. Ainda eram ouvidos os ecos do CPC da UNE, do teatro Arena,
do cinema novo, da bossa nova. Em muitas manifestações
da época, havia o sentido de ampliar o acesso às realizações
artísticas. Rompeu-se a idéia de que a "massa"
deveria restringir-se ao que convencionalmente se entendia por "cultura
popular" (samba, folclore, carnaval, capoeira etc.).
Até hoje acredito que seja o caso de oferecer arte de boa qualidade para todos. Penso também que há uma contribuição de múltiplos atores e povos para criar e conformar o belo. Foi o que quis dizer com "geléia geral", empregada em meu discurso de posse não no sentido conferido por Pignatari e Torquato, mas com o sentido de mistura eclética e criativa de tendências díspares. Minha "geléia geral" tem osso, medula e cérebro. (Ela só não reivindica o nascimento do tropicalismo para São Paulo, porque, apesar da reiterada influência do concretismo e de seus autores, a Bahia parece o Estado natal mais adequado para o movimento). Entendo que a leitura de um poema de Haroldo de Campos, por exemplo, é coisa que pode ser fruída tanto por um aluno da USP quanto por um jovem recém-alfabetizado de região onde a miséria predomina _assim como a audição de uma ópera ou de um samba-enredo de bloco de carnaval. A leitura de um poema como "Finismundo", por exemplo, é também um ato de inclusão social. Pouco importa se, naquele momento, o leitor não saberá que o poeta fez referência ao naufrágio de Ulisses. Pouco importa se não leu Homero, Dante ou Bocaccio. A leitura poderá estimular o jovem a ler outros poemas. Poderá incentivá-lo a tomar o papel e escrever seu próprio poema. Naquele instante, a cultura poderá se tornar a via de socialização daquele indivíduo. Se ele encontrar tempo para ler e estudar, será capaz de competir com jovens de classe média em concursos públicos. Provavelmente dirá não ao tráfico. Porque seus interesses serão outros, assim como sua capacidade de extrair o sustento próprio. A "função" do poema não terá sido menos transcendente (nem menos concreta). Costuma-se enxergar no esporte a alternativa por excelência do combate à criminalidade. A arte pode cumprir também esse papel e não será maculada por isso. Pelo contrário. A política cultural é o instrumento que tornará isso possível. Incomoda a alguns que a arte seja encarada como elemento de promoção social. Acredito que ela possa e deva funcionar como tal. Noutras palavras: política cultural é também instrumento de transformação. O espaço da política, seja em qual campo for, é o da transformação. Ninguém escreve um poema para a inclusão social de seu leitor, mas um administrador público pode valer-se de uma obra de arte desse modo tão material e concreto. Eu diria que um secretário da Cultura tem essa obrigação. Eu me atribuo a missão de utilizar a política, inclusive a cultural, como veículo de combate à exclusão. Sempre com o mesmo empenho que marcou minha passagem pelas instituições e entidades com as quais me orgulho de ter colaborado. Cláudia Costin, 47, mestre em economia pela Escola de Administração da FGV-SP, é secretária da Cultura do Estado de São Paulo. Foi ministra da Administração Federal (governo FHC). |
Folha
de São Paulo, 23 de Fevereiro de 2003, p. A3 |
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