Uma
disfunção do sistema tributário é a psicose
anticumulatividade que acometeu boa parte da sociedade brasileira. Acabar
com os tributos em cascata virou palavra de ordem e, como tal, esse
conceito perdeu significado concreto. Em recente entrevista, o ministro
da Fazenda, Antonio Palocci Filho, pregou o fim da cumulatividade tributária,
na mesma oportunidade em que defendeu a alteração dos
mecanismos de financiamento do regime geral da Previdência mediante
uma nova tributação sobre faturamento. A contradição
é gritante.
Já há vítimas dessa campanha inquisitorial contra
os tributos cumulativos. A transformação do PIS em tributo
não-cumulativo implicou aumento nominal de arrecadação
de 54,21% (34,72% em valores reais), em janeiro de 2003, relativamente
ao mesmo período do ano anterior.
Excelente estudo elaborado por Roberto Nogueira Ferreira sobre o assunto
conclui que o aumento da receita do PIS em 2003 será da ordem
de R$ 7,2 bilhões e que, se o mesmo critério for aplicado
à
Cofins, a elevação da arrecadação atingirá
mais R$ 17 bilhões, ou cerca de 1,8% do PIB, ou 10% de acréscimo
na receita administrada pela Secretaria da Receita Federal. Resta saber
se a sociedade brasileira suportará mais essa sobrecarga tributária.
Mais preocupante ainda é o fato de essa elevação
incidir em detrimento de setores como a agroindústria e os serviços
e em benefício do grande comércio e da indústria.
A resultante alteração nos preços relativos da
economia implicará efeitos alocativos desconhecidos, a ponto
de o autor dos estudos indagar "se a sociedade estaria disposta
a trocar um benefício não mensurado na competitividade
do produto nacional (e que pode ser facilmente
anulado por outros fatores) ... pela troca da sistemática da
incidência do PIS e Cofins de cumulativa para não-cumulativa,
por uma elevação substancial e desigual na carga tributária
global...". A
percepção de que a nova sistemática implicará
tal aumento de arrecadação certamente será mais
um fator de estreitamento da base tributária nacional a ocorrer
em futuro próximo por meio do aumento da evasão de impostos.
Se a primeira meta de qualquer sistema tributário é arrecadar,
decorre ser preciso que todos paguem, que a incidência tributária
seja universal. É evidente que, satisfeita a primeira condição,
a de arrecadar de toda a sociedade, deve-se buscar um sistema tributário
mais simples, mais barato, que tenha um bom padrão de incidência.
Mas, se essa condição (de arrecadar de forma universal)
não for satisfeita, a sobrecarga sobre os contribuintes efetivos
se tornará insuportável, a evasão será estimulada
e a arrecadação será
comprometida. É como se um grupo de dez amigos saísse
diariamente para almoçar e a conta fosse paga sempre pelos mesmos
quatro ou cinco convivas. Sem dividir a conta por todos, a situação
fica insustentável; os que pagam a conta passarão a se
recusar a arcar com as despesas. Esse é o caminho que será
trilhado pelo Brasil se não se reformar o sistema tributário
de modo a ampliar o universo de contribuintes. A estratégia defensiva
utilizada até o momento pelos contribuintes
inconformados tem sido os setores mais fortes e mais organizados transferirem
sua carga tributária para outros setores mais débeis,
a exemplo do ocorrido com a "retirada da cumulatividade" do
PIS.
Mas esse caminho não é um jogo cooperativo e certamente
introduzirá instabilidades e conflitos latentes dentro da sociedade
que eventualmente levará o sistema tributário a um impasse.
Mas, para não gerar angustia sem oferecer um fio de esperança,
cumpre mostrar que há saídas para o impasse. A reforma
tributária que o Brasil necessita deverá ser capaz de
manter a carga tributária global constante (ao menos em um primeiro
momento) e, ao mesmo tempo, reduzir a carga tributária
para os atuais contribuintes, já sufocados pelo peso dos tributos
que arrecadam. Isso implica identificar um conjunto de tributos que
sejam capazes de universalizar a base de contribuintes e, assim, redistribuir
a atual carga de forma a desonerar os atuais contribuintes e onerar
os que sonegam e os que se ocultam na informalidade. Essa proeza é
possível mediante uma nova composição tributária
que abra maiores espaços aos tributos não-declaratórios,
como os impostos seletivos e os impostos sobre movimentação
financeira.
A tabela anexa, elaborada a partir das matrizes insumo-produto do IBGE,
compara as cargas tributárias setoriais dos tributos indiretos
declaratórios (ICMS, IPI, ISS e as contribuições
patronais ao INSS) com um Imposto sobre Movimentação Financeira
com alíquota de 1,92% no débito e no crédito dos
lançamentos bancários. Em ambos os casos a arrecadação
é a mesma, ou seja, 14,7% do PIB.
Nota-se a significativa redução na carga tributária
setorial. Em outras palavras, a aplicação de um imposto
não-declaratório sobre movimentação financeira
reduz a carga tributária dos atuais
contribuintes em cerca de 70%, ao mesmo tempo em que mantém a
arrecadação constante.
Vê-se que, enquanto no sistema tradicional a variação
nos preços relativos dos setores vai de 19,88% a 65,17%, a introdução
de um IMF faz esse impacto cair para uma faixa entre 4,64% e 16,69%.
O
desvio padrão em relação aos preços livres
de tributos foi de 8% no sistema tradicional e de 3,41% com a adoção
de um IMF. O que os dados da simulação mostram é
que qualquer outra linha de
reforma, que não a de introduzir impostos não-declaratórios
sobre movimentação financeira em substituição
aos impostos convencionais, irá apenas procrastinar a busca de
soluções para as
atuais mazelas do sistema tributário brasileiro.
Marcos
Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 57, é doutor em
Economia pela Universidade Harvard e professor titular e vice-presidente
da Fundação Getúlio Vargas. É autor do livro
"A verdade sobre o Imposto Único", editora LCTE, 2003.
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