NOSSO VINHO


BENJAMIN STEINBRUCH

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Porque amanhã é Natal, dia em que os brasileiros gostam de erguer uma taça de vinho, vai aqui uma citação a Carlos Puebla, tradicional compositor cubano de canções revolucionárias. Numa dessas músicas, ele canta as "virtudes" do vinho cubano. "Nosso vinho é de banana/ Mas é nosso vinho/Ainda que seja azedo/É nosso vinho", diz Puebla, em uma de suas composições mais nacionalistas. Tive oportunidade de sentar em frente a Fidel Castro certa vez em um almoço no Rio.
Encheu-me de perguntas sobre negócios. Demonstrou enorme curiosidade de saber como havíamos desenvolvido no Brasil alguns setores de excelência industrial, como os da siderurgia, da tecelagem, da mineração, da agroindústria e de calçados. Não vou exaltar maravilhas do regime cubano. Cuba não é, evidentemente, um modelo a ser seguido.
Cito o verso de Puebla e a curiosidade de Fidel apenas para observar que está na hora de olhar com mais cuidado para o desenvolvimento de valores nacionais. Na antiga economia cubana, talvez esse sentimento explique por que o regime ainda não desmoronou completamente.
Em suas viagens ao exterior - Argentina, Chile, México e Estados Unidos-, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, usou um jato Legacy, fabricado em São José dos Campos. Consta que viajou no maior conforto, ainda que tivesse de fazer uma escala para reabastecimento em Roraima antes de alcançar Washington. Lula também decidiu usar sapatos nacionais, fabricados em Franca, na solenidade de posse. Certamente estará bem calçado e não sairá da festa com bolhas nos pés.
Ao voar em um jato da Embraer ou usar um sapato de Franca, Lula não está tomando uma atitude xenófoba, como poderia ser classificada a de Puebla ao exaltar um duvidoso vinho de banana. Ele simplesmente procura dar atenção e prestigiar setores altamente competitivos da indústria brasileira, que nada deixam a desejar em relação aos concorrentes internacionais.
Trata-se de uma afirmação de valores nacionais com as quais nos desacostumamos a conviver nos tempos de neoliberalismo. Comportamentos como esse são um bom prenúncio. Quem sabe a empresa produtiva nacional, abandonada à sua própria sorte nos últimos anos, possa contar com o apoio do próximo governo. A empresa nacional não quer privilégios, subsídios ou reservas de mercado. Só quer ter condições de igualdade para competir com os concorrentes internacionais.
Há duas semanas, o ministro do Desenvolvimento, Sergio Amaral, divulgou o importante "Estudo da Competitividade de Cadeias Integradas no Brasil".
O trabalho, de 186 páginas, coordenado pelo economista Luciano Coutinho, faz um diagnóstico dos problemas da indústria brasileira e prescreve algumas receitas para torná-la poderosa e competitiva internacionalmente de forma a encarar a provável abertura de mercado, prevista para 2005 com a Alca e o acordo de livre comércio com a União Européia.
Não há surpresas na lista dos setores identificados como altamente competitivos: papel e celulose, couro e calçados, têxtil e confecções, siderurgia e alguns agronegócios, como os do café e de cítricos. Mesmo para esses setores, que já disputam em pé de igualdade com seus concorrentes internacionais, o trabalho lista uma série de recomendações para que possam enfrentar o desafio da Alca. Cita, principalmente, a necessidade de redução de custos de capital, de abertura de financiamentos, de eliminação dos tributos em cascata e de apoio tecnológico.
Nos setores não-competitivos, a liberalização comercial de 2005 poderá representar a ruína. Ainda que o próprio Amaral tenha considerado o estudo pessimista demais, tudo indica que algumas providências nacionalistas preparatórias precisam ser tomadas desde já.
Um dos equívocos do governo que termina foi a repulsa neoliberal à intervenção na economia para estimular investimentos e desenvolvimento. Não basta apenas estabilizar a moeda -uma importante conquista do período FHC - para conseguir crescimento econômico consistente. É preciso planejamento e estímulo aos setores potencialmente competitivos.
Nos seus derradeiros dias, o atual governo deixa para a administração Lula um estudo que pode representar a base para o estabelecimento de uma política industrial no país. Ao formular a nova política, Lula não deve ter vergonha de conceder facilidades aos setores exportadores, nem de apoiar abertamente a empresa nacional produtiva, tão desprezada nos anos FHC, com deficiência crônica de capital, sem financiamentos de longo prazo e sufocada por juros exorbitantes, enquanto o setor financeiro navegou sempre em um mar de facilidades.

Benjamin Steinbruch, 49, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.

 

 

 

Folha de São Paulo, 24 de dezembro de 2002, página B2.



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