LULA LEVOU FANON
PARA A ONU

 

Elio Gaspari

As citações feitas por Lula em seu discurso na ONU podem gerar duas boas iniciativas culturais. A primeira seria a reedição de "Os Condenados da Terra", do pensador caribenho Frantz Fanon. A segunda, a edição, em português, do livro "Freedom from Fear" ("Livres do Medo", "Sem Medo do Medo", ou coisa parecida), do professor americano David Kennedy. Frantz Fanon foi um brilhante radical. Morreu de leucemia aos 36 anos, em 1961. O apostolado da violência fez dele um grande herói da esquerda negra americana dos anos 60. Era um dos santos do altar de Glauber Rocha. Ficou fora de moda. Não é lembrado na Martinica, onde nasceu, nem na Argélia, por cuja independência batalhou. Lula começou seu discurso atribuindo a Fanon a seguinte frase:
"Se queres, aí a tens: a liberdade para morrer de fome". A reedição de "Os Condenados da Terra" permitirá uma visita a esse texto incendiário, pra lá de MST. Nele, Fanon vocaliza, num exemplo, a arrogância das potências coloniais e diz:
"Já que vocês querem a independência, tomem-na e morram de fome". (Na edição brasileira, "danem-se", na americana, "starve", e no original francês, "crevez".)
É útil continuar a leitura no ponto em que Lula parou: "Não resta aos dirigentes nacionalistas outro recurso senão voltar-se para seu povo e pedir-lhe um enorme esforço. Desses homens famintos exige-se um regime de austeridade". Dois dias depois, Lula aumentou a meta de superávit primário de Pindorama para 4,5%. Vai tirar mais dinheiro da economia para pagar a banqueiros.
Depois de ter citado um radical, o companheiro lembrou uma famosa frase de Franklin Roosevelt. Segundo Lula, é a seguinte:
"O que mais se deve temer é o próprio medo". No seu primeiro discurso de posse, em 1933, Roosevelt deu aos seus ouvintes um dos mais bonitos parágrafos da literatura política mundial:
"A única coisa de que devemos ter medo é do medo". ("The only thing we have to fear is fear itself.") Na repetição da palavra medo, Roosevelt reforçou o recado. Na utilização de um sinônimo, o tradutor de Lula diluiu-o. Novamente, a continuação da frase seria útil ao companheiro: "Esse terror indefinido,
irracional e injustificado que paralisa os esforços necessários para se converter uma retirada num avanço". Nesse discurso Roosevelt acusou a banca de ter desertado os interesses da civilização por conta de uma mistura de incompetência e teimosia.
O livro do professor Kennedy, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2000, conta a história da Era Roosevelt. Vai da crise de 1929 ao fim do presidente e da Segunda Guerra, em 1945. Nele se aprendem coisas surpreendentes. O colapso da Bolsa de 1929 não foi a causa da Depressão dos anos seguintes.
Olhados
isoladamente, todos os programas sociais de Roosevelt deram errado, o que deu certo foi o conjunto (com FFHH aconteceu o contrário). Lendo-o, o PT Federal descobrirá que o bonde de Roosevelt passou por ele em janeiro de 2002, quando Lula assumiu. Quanto a Fanon, Lula poderia tê-lo lido há 20 anos. Hoje é uma linda peça de antiquário de um radicalismo perdido. Citando Fanon na ONU e elevando o superávit primário em Brasília, Lula sacraliza o estilo Olívio Dutra: faz-se fotografar andando de bicicleta num evento a que chegou de automóvel oficial.

 
Folha de São Paulo, Folha Brasil, 26 de setembro de 2004, p. A10.



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