Mais
de um ano já se passou desde o início das negociações,
no âmbito da Organização Mundial do Comércio,
da Rodada de Doha para o Desenvolvimento, em que todos assumimos compromissos
de
abertura dos mercados e de atualização das regras da
OMC num sentido mais favorável aos países em desenvolvimento.
Nesta época de turbulência geopolítica e de dificuldades
econômicas, a OMC é,
mais do que nunca, necessária, como garantia de estabilidade,
transparência e previsibilidade no comércio mundial.
Desde o início do novo ciclo de negociações,
a União Européia tem tido um papel ativo nesse sentido,
com a apresentação de propostas substanciais e concretas
e privilegiando sempre o desenvolvimento.
Avanço europeu
A agricultura não foi exceção, e a proposta da
UE traça uma via intermediária entre posições
extremas. A proposta faz um esforço significativo de conciliação
da multiplicidade de interesses representada na OMC: maior acesso
de todos ao mercado, redução dos subsídios agrícolas
que podem provocar distorções comerciais, redução
drástica de todas as formas de ajuda à exportação,
ponderação de aspectos não-comerciais, como a
segurança dos alimentos e o ambiente, e um tratamento preferencial
e focalizado dos países em desenvolvimento.
A proposta da UE também concretiza numericamente a forma de
atingir esses objetivos. Porém, ao ouvir alguns membros da
OMC, pode-se facilmente ficar com a impressão de que todos
os subsídios agrícolas são ruins e devem ser
abolidos, opinião que não partilhamos. O objetivo comum
correto da OMC é a redução dos subsídios
agrícolas -incluindo os da UE, mas não apenas esses-
que distorçam o comércio internacional e prejudiquem
os interesses dos países em desenvolvimento. Reconhecimento
da OMC
Contudo, nem todas as partes tomaram o mesmo rumo, e, pior ainda,
as partes nem sequer estão todas procurando evoluir no mesmo
sentido. Nos últimos anos, a UE efetuou um conjunto de reformas
destinadas a reduzir substancialmente os efeitos de distorção
comercial dos apoios comunitários ao setor agrícola.
Esse fato tem de ser reconhecido nas negociações da
OMC, mas até agora não aconteceu.
O grupo dos países exportadores prossegue a sua cruzada a favor
do livre comércio de produtos agrícolas, o que não
significa mais do que um direito ilimitado de explorar inegáveis
vantagens
comparativas por parte desses países. Parece justo, alguém
poderia dizer -mas que implicações teria isso para os
outros? Para sociedades de Maurício a Malta, de Bangladesh
ao Sri Lanka, da Coréia do Sul à Suécia, a agricultura
tem também a ver com preocupações ambientais,
com a segurança dos alimentos, com garantias de aprovisionamento
alimentar e com a proteção do modo de vida rural.
Exportadores
Mas os países fortemente exportadores recusam liminarmente
que tais aspectos sejam levados em conta, ignorando muito convenientemente
que a Declaração de Doha refere-se com clareza à
necessidade de que sejam ponderados. As negociações
da OMC terão de conduzir a reduções substanciais
dos subsídios que tenham, de fato, efeitos de distorção
comercial ou prejudiquem os
países em desenvolvimento.
Não compete a qualquer país participante nas negociações
definir para os outros -sobretudo países em desenvolvimento-
o modo de conseguir um setor agrícola sustentável, nos
planos social, ambiental
e econômico. Atente-se, pois: não pode haver, e não
haverá, um acordo de Doha se os países em desenvolvimento
sentirem não ter sido tratados de um modo equitativo. No tocante
a acesso ao mercado, a maioria das propostas se arrisca a ser danosa
para esses países, em especial para os países em desenvolvimento
mais vulneráveis, que confiam num acesso preferencial aos mercados,
nomeadamente da UE. A facilidade de acesso aos mercados não
pode se tornar um instrumento
contundente de exportadores agrícolas já poderosos contra
o mundo em desenvolvimento.
Não surpreende, portanto, que a UE e 73 outros membros da OMC
tenham enveredado por uma abordagem diferente, que mostrou funcionar
bem no processo reformista da Rodada Uruguai. As
propostas que favoreceriam os países fortemente exportadores
em detrimento dos mais fracos foram acertadamente rejeitadas por muitos
países em desenvolvimento. Então, o que está
acontecendo no setor agrícola europeu? Pois bem: uma movimentação
sem hesitações no sentido da reforma, como
revela a decisão recente de congelar o orçamento agrícola
comunitário em termos reais, apesar do acréscimo esperado
de 4 milhões de novos agricultores com o alargamento da UE.
É preciso olhar para o que de fato fazemos -e não apenas
para o que dizemos. A UE é hoje o maior importador de produtos
agrícolas e o principal importador de alimentos dos países
em desenvolvimento e dos países mais pobres. De fato, importa
mais alimentos dos países pobres do que os EUA, o Japão,
o Canadá e a Austrália juntos.
Despesas agrícolas
Entretanto outros evoluíram em sentido oposto e aumentaram
as suas despesas agrícolas. Não obstante, as propostas
apresentadas em Genebra ainda não se ocuparam seriamente dos
regimes
utilizados por esses países no apoio às suas agriculturas.
É compreensível, portanto, que, nessas circunstâncias,
não estejamos dispostos a receber muitas lições
sobre abertura dos mercados e também que, para a UE, seja fundamental
disciplinar todas as despesas agrícolas com efeitos de distorção
comercial, mesmo que seja apenas para garantir que não sofreremos
os efeitos de concorrência desleal por parte dos EUA -país
cujo nível elevado de gastos em apoios agrícolas é
comparável ao da UE.
Cabeça
fria
Trabalhamos arduamente para chegar a um acordo sobre as modalidades
agrícolas dentro do prazo previsto (31 de março). Seria
um grande erro não cumprir esse prazo, e por isso instamos
todas as partes envolvidas a redobrar esforços por uma solução.
Mas, se tal não for possível, há que manter a
cabeça fria. Mais importante do que o prazo fixado é
a introdução de um novo dinamismo no processo negocial,
para que se continue a trabalhar construtivamente no estreitamento
das diferenças existentes e para que a reunião ministerial
de setembro, em Cancún, possa ser um sucesso.
Os últimos meses não foram desperdiçados. As
discussões intensas das últimas semanas revelaram um
quadro complexo, cuja compreensão é crucial para a obtenção
de futuros acordos. Longe do simplismo da divisão entre adeptos
da liberalização e do protecionismo, existem, pelo menos,
quatro perspectivas em campo: a dos que acreditam que a agricultura
é algo que transcende os aspectos meramente econômicos
e apóiam o setor, como a UE; a dos grandes países exportadores,
liderados pelo Grupo de Cairns, que rejeitam liminarmente qualquer
apoio ao setor agrícola; a dos EUA, interessados na abertura
dos mercados de outros países, mas que gastam tanto quanto
a UE, senão mais, em apoio ao setor agrícola; e, finalmente,
a dos países em desenvolvimento mais frágeis, que acreditam
nos aspectos não-econômicos da agricultura, mas dispõem
de poucos recursos financeiros para apoiar o setor. Para aqueles que,
como a UE, estão dispostos a encontrar soluções
que levem em conta os interesses dos outros parceiros, chegou a hora
de trabalhar na busca do máximo denominador comum dos vários
interesses.
Encontrando-se numa posição intermediária em
relação à maioria dos motivos de controvérsia
em jogo, a UE está numa posição particularmente
privilegiada para intermediar um acordo. É o que irá
fazer. A UE deseja que se obtenham resultados consistentes no setor
agrícola e em outras áreas. Mas, para que a Rodada de
Doha para o Desenvolvimento produza resultados dignos desse nome,
todos devem estar dispostos a contribuir para o sucesso das negociações.
Isso pressupõe que se apliquem regras idênticas a todos
os países ricos.
Pascal Lamy é membro da Comissão Européia
responsável pelo Comércio.
Franz Fischler é membro da Comissão
Européia responsável pela Agricultura.