UE NÃO PRECISA DE LIÇÕES PARA ABRIR MERCADO

Pascal Lamy
Franz Fischler

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Mais de um ano já se passou desde o início das negociações, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, da Rodada de Doha para o Desenvolvimento, em que todos assumimos compromissos de
abertura dos mercados e de atualização das regras da OMC num sentido mais favorável aos países em desenvolvimento. Nesta época de turbulência geopolítica e de dificuldades econômicas, a OMC é,
mais do que nunca, necessária, como garantia de estabilidade, transparência e previsibilidade no comércio mundial. Desde o início do novo ciclo de negociações, a União Européia tem tido um papel ativo nesse sentido, com a apresentação de propostas substanciais e concretas e privilegiando sempre o desenvolvimento.
Avanço europeu
A agricultura não foi exceção, e a proposta da UE traça uma via intermediária entre posições extremas. A proposta faz um esforço significativo de conciliação da multiplicidade de interesses representada na OMC: maior acesso de todos ao mercado, redução dos subsídios agrícolas que podem provocar distorções comerciais, redução drástica de todas as formas de ajuda à exportação, ponderação de aspectos não-comerciais, como a segurança dos alimentos e o ambiente, e um tratamento preferencial e focalizado dos países em desenvolvimento.
A proposta da UE também concretiza numericamente a forma de atingir esses objetivos. Porém, ao ouvir alguns membros da OMC, pode-se facilmente ficar com a impressão de que todos os subsídios agrícolas são ruins e devem ser abolidos, opinião que não partilhamos. O objetivo comum correto da OMC é a redução dos subsídios agrícolas -incluindo os da UE, mas não apenas esses- que distorçam o comércio internacional e prejudiquem os interesses dos países em desenvolvimento. Reconhecimento da OMC
Contudo, nem todas as partes tomaram o mesmo rumo, e, pior ainda, as partes nem sequer estão todas procurando evoluir no mesmo sentido. Nos últimos anos, a UE efetuou um conjunto de reformas destinadas a reduzir substancialmente os efeitos de distorção comercial dos apoios comunitários ao setor agrícola. Esse fato tem de ser reconhecido nas negociações da OMC, mas até agora não aconteceu.
O grupo dos países exportadores prossegue a sua cruzada a favor do livre comércio de produtos agrícolas, o que não significa mais do que um direito ilimitado de explorar inegáveis vantagens
comparativas por parte desses países. Parece justo, alguém poderia dizer -mas que implicações teria isso para os outros? Para sociedades de Maurício a Malta, de Bangladesh ao Sri Lanka, da Coréia do Sul à Suécia, a agricultura tem também a ver com preocupações ambientais, com a segurança dos alimentos, com garantias de aprovisionamento alimentar e com a proteção do modo de vida rural.
Exportadores
Mas os países fortemente exportadores recusam liminarmente que tais aspectos sejam levados em conta, ignorando muito convenientemente que a Declaração de Doha refere-se com clareza à necessidade de que sejam ponderados. As negociações da OMC terão de conduzir a reduções substanciais dos subsídios que tenham, de fato, efeitos de distorção comercial ou prejudiquem os
países em desenvolvimento.
Não compete a qualquer país participante nas negociações definir para os outros -sobretudo países em desenvolvimento- o modo de conseguir um setor agrícola sustentável, nos planos social, ambiental
e econômico. Atente-se, pois: não pode haver, e não haverá, um acordo de Doha se os países em desenvolvimento sentirem não ter sido tratados de um modo equitativo. No tocante a acesso ao mercado, a maioria das propostas se arrisca a ser danosa para esses países, em especial para os países em desenvolvimento mais vulneráveis, que confiam num acesso preferencial aos mercados, nomeadamente da UE. A facilidade de acesso aos mercados não pode se tornar um instrumento
contundente de exportadores agrícolas já poderosos contra o mundo em desenvolvimento.
Não surpreende, portanto, que a UE e 73 outros membros da OMC tenham enveredado por uma abordagem diferente, que mostrou funcionar bem no processo reformista da Rodada Uruguai. As
propostas que favoreceriam os países fortemente exportadores em detrimento dos mais fracos foram acertadamente rejeitadas por muitos países em desenvolvimento. Então, o que está acontecendo no setor agrícola europeu? Pois bem: uma movimentação sem hesitações no sentido da reforma, como
revela a decisão recente de congelar o orçamento agrícola comunitário em termos reais, apesar do acréscimo esperado de 4 milhões de novos agricultores com o alargamento da UE.
É preciso olhar para o que de fato fazemos -e não apenas para o que dizemos. A UE é hoje o maior importador de produtos agrícolas e o principal importador de alimentos dos países em desenvolvimento e dos países mais pobres. De fato, importa mais alimentos dos países pobres do que os EUA, o Japão, o Canadá e a Austrália juntos.
Despesas agrícolas
Entretanto outros evoluíram em sentido oposto e aumentaram as suas despesas agrícolas. Não obstante, as propostas apresentadas em Genebra ainda não se ocuparam seriamente dos regimes
utilizados por esses países no apoio às suas agriculturas. É compreensível, portanto, que, nessas circunstâncias, não estejamos dispostos a receber muitas lições sobre abertura dos mercados e também que, para a UE, seja fundamental disciplinar todas as despesas agrícolas com efeitos de distorção comercial, mesmo que seja apenas para garantir que não sofreremos os efeitos de concorrência desleal por parte dos EUA -país cujo nível elevado de gastos em apoios agrícolas é comparável ao da UE.
Cabeça fria
Trabalhamos arduamente para chegar a um acordo sobre as modalidades agrícolas dentro do prazo previsto (31 de março). Seria um grande erro não cumprir esse prazo, e por isso instamos todas as partes envolvidas a redobrar esforços por uma solução. Mas, se tal não for possível, há que manter a cabeça fria. Mais importante do que o prazo fixado é a introdução de um novo dinamismo no processo negocial, para que se continue a trabalhar construtivamente no estreitamento das diferenças existentes e para que a reunião ministerial de setembro, em Cancún, possa ser um sucesso.
Os últimos meses não foram desperdiçados. As discussões intensas das últimas semanas revelaram um quadro complexo, cuja compreensão é crucial para a obtenção de futuros acordos. Longe do simplismo da divisão entre adeptos da liberalização e do protecionismo, existem, pelo menos, quatro perspectivas em campo: a dos que acreditam que a agricultura é algo que transcende os aspectos meramente econômicos e apóiam o setor, como a UE; a dos grandes países exportadores, liderados pelo Grupo de Cairns, que rejeitam liminarmente qualquer apoio ao setor agrícola; a dos EUA, interessados na abertura dos mercados de outros países, mas que gastam tanto quanto a UE, senão mais, em apoio ao setor agrícola; e, finalmente, a dos países em desenvolvimento mais frágeis, que acreditam nos aspectos não-econômicos da agricultura, mas dispõem de poucos recursos financeiros para apoiar o setor. Para aqueles que, como a UE, estão dispostos a encontrar soluções que levem em conta os interesses dos outros parceiros, chegou a hora de trabalhar na busca do máximo denominador comum dos vários interesses.
Encontrando-se numa posição intermediária em relação à maioria dos motivos de controvérsia em jogo, a UE está numa posição particularmente privilegiada para intermediar um acordo. É o que irá fazer. A UE deseja que se obtenham resultados consistentes no setor agrícola e em outras áreas. Mas, para que a Rodada de Doha para o Desenvolvimento produza resultados dignos desse nome, todos devem estar dispostos a contribuir para o sucesso das negociações.
Isso pressupõe que se apliquem regras idênticas a todos os países ricos.


Pascal Lamy é membro da Comissão Européia responsável pelo Comércio.
Franz Fischler é membro da Comissão Européia responsável pela Agricultura.

 Folha de São Paulo, 29 de março de 2003, p. B11



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