É
preocupante uma situação que vem se repetindo na agricultura,
um dos poucos setores da economia brasileira que ainda conseguem manter
um vigor impressionante: medidas provisórias ou leis que existem
e que são reconhecidas pelo governo simplesmente não são
respeitadas pelo mesmo. É a velha história das leis que
não são aplicadas. Refiro-me aos casos da proibição
de desapropriação de terras invadidas e da soja transgênica.
No caso das terras invadidas, a posição do governo é
lamentável. Quando se reúnem com proprietários
ou quando deparam com um caso de maior violência por parte de
invasores (como em Pernambuco), as autoridades garantem o cumprimento
da lei. A partir de então nada se faz, o que leva o MST e similares
a elevarem a temperatura e a ousadia das novas ações.
Problemas mais graves certamente virão. A Lei dos Transgênicos
á surrealista. Ela confirma a proibição de seu
plantio, o que agrada os ambientalistas, mas legaliza a comercialização
da atual safra. Tradução: fica legalmente permitido violar
por um momento a lei; uma solução semelhante à
encontrada no caso da publicidade do fumo e da corrida de Fórmula
1 deste ano. Pior, pela versão original (que felizmente está
sendo revista), o agricultor que plantou soja que não é
transgênica teria de pagar pelos testes que comprovam a natureza
de seu produto e que ele cumpriu a lei!
Mais do que isso, a soja transgênica pode ser comercializada desde
que o rótulo evidencie a sua qualificação, algo
que tem sido sonoramente ignorado por quase todos. Ou seja, a lei que
autoriza o descumprimento da lei está sendo completamente descumprida!
Como consequência, muitos agricultores que têm plantado
soja modificada estão guardando sementes para utilizar no próximo
plantio, quando certamente tudo ficará ainda mais complicado.
A ação do Executivo no setor agrícola é
condenável por outro aspecto: a criação de expectativas
irrealistas que simplesmente não serão atendidas. É
o caso, por exemplo, dos assentamentos rurais. Estes têm um papel
importante a cumprir em termos de redução da pobreza,
geração de renda familiar decente, melhor distribuição
de renda e manutenção da ocupação na área
rural. Mas associar esse tipo de produção à melhora
da oferta global da agricultura brasileira é algo totalmente
descabido.
A produção agrícola cresce por sua grande dimensão
e também por sistemas de integração (como no caso
de frangos, suínos, fumo, frutas, flores etc.), nos quais a agricultura
familiar tem importância elevada. Assentamentos rurais alteram
apenas marginalmente as taxas de expansão da produção
agrícola -basta pensar que não mais do que 1 em cada 3
assentados produz algum excedente; se cada assentado bem-sucedido conseguir
produzir um excedente de 60 sacos de grãos, após o consumo
e a retenção de sementes, a oferta de grãos subirá
menos que 1% para cada milhão de novos proprietários,
número difícil de ser atingido. Estão sendo aguardadas
duas novidades na área de crédito que afetarão
o setor agrícola. São elas o estímulo às
cooperativas e a redução do percentual das aplicações
obrigatórias dos bancos em áreas como habitação
e agricultura. O estímulo às cooperativas de crédito
é certamente bem-vindo. Entretanto, dado seu tamanho modesto,
indispensável à manutenção de baixo custo,
e a cautela necessária para operá-lo, parece temerário
acreditar que por aí virá um aumento significativo da
oferta de crédito. Mesmo num país com uma relação
crédito/PIB tão baixa, é ilusão achar que
as cooperativas afetarão significativamente oferta e custo dos
empréstimos.
Além disso, fica clara a completa falta de proporção
(de milhões contra bilhões de reais) quando se compara
a expansão do crédito via cooperativas a uma eventual
redução na obrigatoriedade de os bancos destinarem à
agricultura parte de seus depósitos. É útil lembrar
que essa redução já foi feita no passado, com imperceptíveis
impactos no mercado de crédito. Não existe melhor aplicação
para um depósito à vista que carregar um título
do Tesouro, com risco nulo e retorno de 26% ao ano. Portanto a redução
eventual da exigência de aplicação na agricultura
apenas implicará o crescimento da carteira própria de
títulos públicos dos bancos.
A trajetória do setor agrícola tem sido notável
e cantada em prosa e verso. Logo, é importante refletir se bloqueios
à pesquisa (como no caso dos transgênicos), ameaças
de redução do crédito ao setor e o descaso com
a manutenção e expansão da infra-estrutura não
terminarão por reduzir seu desempenho.
José
Roberto Mendonça de Barros, 59, economista, é
professor aposentado da Faculdade de Economia e Administração
da USP e sócio-diretor da MB Associados.
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