Nos
improvisos do presidente se misturam frases genéricas, apelo
à paciência, linguagem afetiva e o elogio dos "sem-diploma"
A semana terminou com dois marcos para Luiz Inácio Lula da Silva.
O presidente ultrapassou seu antecessor em número de discursos
proferidos nos seis primeiros meses de Planalto. E se embrulhou pela
primeira vez nas próprias palavras ao incluir o Congresso e o
Poder Judiciário no rol de adversidades que não o impedirão
de conduzir o Brasil a um futuro exitoso.
A dianteira sobre Fernando Henrique Cardoso -104 discursos contra 93-
é simbólica, mas antes dela já reinava a percepção
de que Lula fala mais. Para isso contribui a preferência do presidente
pelo improviso, que o leva a derivar os textos preparados por sua assessoria,
quando não a abandoná-los de todo em favor de considerações
do momento.
"Não tem chuva, não tem geada, não tem terremoto,
não tem cara feia, não tem um Congresso Nacional, não
tem um Poder Judiciário; só Deus será capaz de
impedir que a gente faça esse país ocupar o lugar de destaque
que ele nunca deveria ter deixado de ocupar", afirmou o presidente
na terça-feira, em cerimônia na Confederação
Nacional da Indústria.
Tamanho o mal-estar, Lula se viu obrigado a vir a público no
dia seguinte para dizer que não tivera a intenção
de ofender os demais Poderes. "Foi sem dúvida sua declaração
mais desastrada, e por ela está pagando o preço merecido",
avalia o historiador José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro). "Ele próprio já
afirmou que um presidente não pode fazer bravatas. Fez a maior
delas."
A frase em questão ilustra uma das linhas de força da
retórica de Lula. Trata-se do tom messiânico imprimido
às referências ao desafio de governar. "Alguém
vai ter que salvar este país", disse duas semanas atrás
em Pelotas (RS), sem deixar dúvida sobre quem seria o único
capaz de fazê-lo.
Sírio Possenti, professor de linguística da Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas), considera prematuro enxergar tônica personalista
no discurso de Lula. "Evidentemente ele não é um
diplomata, mas o que me parece característico é a sua
forma de se dirigir ao público como fazem os comunicadores populares
de rádio ou televisão."
Chamou a atenção de Possenti, no evento em Pelotas, o
fato de Lula ter falado de microfone em punho e andando pelo palco.
Feijões e bebês
Outro ingrediente da loquacidade presidencial são as comparações.
Versem sobre as etapas da reforma de uma casa, a duração
da gravidez ou o tempo de maturação dos feijões,
as historietas de Lula são, na verdade, uma só.
Indiretamente, todas pedem ao eleitor que tenha paciência para
ver cumpridas as promessas de campanha. Se "a esperança
venceu o medo", como disse o petista ao ser eleito, o objetivo
é evitar que se evapore a esperança e com ela a situação
confortável do presidente nas pesquisas.
O cientista político Marcos Coimbra, diretor do instituto Vox
Populi, não vê sinal de esgotamento da paciência
da população. Pesquisa Datafolha publicada na edição
de hoje mostra Lula estacionado com 42% de avaliação ótima
ou boa e 43% de regular, desempenho semelhante ao apresentado por FHC
à mesma altura de seu primeiro mandato e melhor que os de Fernando
Collor e Itamar Franco em igual período.
Em levantamento qualitativo realizado pelo Vox na semana passada, o
estilo de comunicação de Lula é associado por entrevistados
a atributos como "próximo das pessoas" e "diferente
dos outros políticos". O presidente fala demais? "Essa
história de falar muito só incomoda quem lê jornal
todo dia", opina Coimbra.
Além da retórica da paciência, Lula se vale de um
recurso que poderia ser chamado, tomando emprestado um dito do cantor
e compositor Tim Maia, de "tudo é tudo, e nada é
nada".
Utiliza frases que podem servir para a reforma da Previdência,
dúvidas existenciais ou problemas de saúde.
"Uns acordam mais tarde, outros acordam mais cedo. Uns dormem mais
tarde, outros dormem mais cedo. Nem todo mundo dorme e acorda ao mesmo
tempo" (em resposta a parlamentares tucanos que lhe perguntaram
por que o PT defende hoje propostas que combateu enquanto esteve na
oposição).
"Não há ninguém 100% feio nem ninguém
100% bonito" (a respeito de parcerias entre os governos federal
e do Acre).
"Nenhum ser humano é 100% mau e nenhum ser humano é
100% bom" (a propósito de oportunidades para jovens).
Em artigo publicado na revista "Nation", a psicóloga
Renana Brooks identificou fenômeno semelhante no discurso de George
W. Bush, dado a "afirmações tão abstratas
e carentes de significado que se torna impossível fazer-lhes
oposição".
"Linguagem vazia", escreveu Brooks, "é usada para
ocultar generalizações indevidas e neutralizar pontos
de vista divergentes".
"Homem
de coração"
Sobre seu recente encontro com o presidente americano em Washington,
Lula disse crer "que, quando dois seres humanos são sinceros
nas suas relações, acreditam naquilo que estão
falando, têm convicção de propósito, as coisas
podem ser melhores".
A frase exemplifica tanto o "tudo é tudo" quanto outra
característica da fala de Lula. Se Fernando Henrique foi um presidente
"fanático por explicar", como definiu o jornalista
Roberto Pompeu de Toledo
em seu livro-entrevista com o tucano, o sucessor busca convencer pela
emoção -Bush elogiou Lula como "um homem de grande
coração".
"Olhar no olho vale mais que documento por escrito", disse
o presidente a metalúrgicos de São Bernardo (SP) na noite
de quinta-feira. "Política, para mim, a gente faz com telepatia."
Para o psicanalista Jorge Forbes, a linguagem afetiva vai ao encontro
da escolha feita pelo eleitorado em outubro passado. "Se não
fosse assim, teriam elegido José Serra, que representa o discurso
racional por excelência."
Encerra a receita da fala do presidente a insistência com que
ele se refere à sua instrução formal incompleta.
"Eu acho que nós já conseguimos, em seis meses, do
ponto de vista de política internacional, aquilo que muitos que
estudaram a vida inteira não conseguiram fazer", disse Lula
ao voltar dos EUA.
Em Pelotas, declarou que, para governar, não é preciso
falar inglês, mas sim "ter caráter". Em Brasília,
na manhã da sexta-feira passada, além do inglês,
foram descartados "o francês e o russo". "A palavra
universal", afirmou, "é o sentimento".
Como mostram os exemplos acima, as menções ao tema são
feitas em tom de auto-elogio e crítica indireta ao antecessor,
o supertitulado FHC.
A questão da escolaridade foi um dos componentes da rejeição
de parte do eleitorado a Lula em suas três primeiras tentativas
de chegar à Presidência.
Na campanha passada, os tucanos tentaram se aproveitar desse fator de
maneira explícita, cobrando um diploma universitário do
petista no horário eleitoral gratuito. O resultado foi desastroso.
Vitorioso, Lula passou a insistir nessa tecla, misturando o orgulho
por sua origem e trajetória com a defesa, ainda que indireta,
da falta de escolaridade como um valor.
No entender de José Murilo de Carvalho, o presidente se mostra
"defensivo" em relação à sua escolaridade,
beirando o elogio da pouca educação.
"Um psicólogo talvez dissesse que sua atitude revela vulnerabilidade
à crítica e que, no fundo, ele participa da mania nacional
por um diploma de doutor. É pena."
O INCRIVEL LULA
"Não tem chuva, não tem geada, não tem
terremoto, não tem cara feia, não tem Congresso Nacional,
não tem Poder Judiciário; só Deus será capaz
de impedir que a gente faça esse pais ocupar o lugar de destaque
que ele nunca deveria ter deixado de ocupar"
24 de junho, em Brasília
"O Brasil estava quebrado, e alguém vai ter que salvar
este país!"
"Sabem por quê? Porque qualquer outro podia errar. Eu não
posso. Porque qualquer outro que errasse e não desse certo, iria
morar uns meses na França"
17 de junho, em Pelotas (RS)
"Não tem dificuldade que me assuste, que me acanhe (...)
A história não é construída por covardes.
Os covardes não aparecem nem no rodapé"
30 de maio, em discurso na região do ABC paulista
TUDO É TUDO, E NADA É NADA
"Uns acordam mais tarde, outros acordam mais cedo. Uns dormem
mais tarde, outros dormem mais cedo. Nem todo mundo dorme e acorda ao
mesmo tempo"
16 de maio, sobre a mudança de opinião do PT sobre as
reformas
"Nenhum ser humano é 100% mau e nenhum ser humano é
100% bom"
13 de maio, em cerimônia com jovens em Brasília
"A gente vai percebendo que não há ninguém
100% feio nem ninguém 100% bonito. Ou seja, todo mundo pode ser
melhorado"
9 de maio, em reunião com o governo do Acre
"Todo mundo tem o direito de ser contra, a favor ou muito pelo
contrário"
6 de maio, em discurso a prefeitos em Aracaju (SE)
A RETÓRICA DA PACIÊNCIA
"Vocês todos já viram um jogo de futebol. Tem
jogador que tem pressa, pega a bola, não olha para o lado, dá
uma 'bicuda' e não marca o gol. Tem outro que olha para o lado,
vêm um companheiro livre, passa a bola e marca o gol. Nós
não temos tempo de dar 'bicuda'. Nós queremos é
marcar todos os gols que achamos que temos o direito de marcar neste
país"
"A coisa que mais queria na minha vida, quando casei com a minha
galega (Marisa), era um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia de
casamento, porque pernambucano não deixa por menos. Pois bem,
eu tive que esperar nove meses para nascer a criança e mais um
ano par ela falar 'papai' "
17 de junho, em Pelotas (RS)
"Você pode estar com fome, mas, se plantou feijão,
tem que esperar 90 dias. Se plantar um pé de soja, tem que esperar
100, 110 dias. E, quando a gente planta, tem que adubar, jogar água,
regar sempre, para que a árvore nasça fote e frondosa
e não morra com a primeira ventania ou com a primeira seca"
30 de maio, em Brasília
"Estamos começando a engatinhar. É como se vocês
mudassem para uma casa nova. Até mobiliar a casa leva tempo.
Acho que a gente não pode fazer tudo"
8 de abril, em São Paulo
ELOGIO A POUCA ESCOLA
"Eu digo que política não tem segredo, se há
uma coisa que ninguem precisa ter é diploma universitário
para conhecer política"
13 de junho, em Brasília
"Os preconceituosos diziam assim: como é possível
o Lula governar um país, se ele nem falar inglês? Como
é que ele vai conversar com o Bush, conversar com o Tony Blair?
E eu estou provando que não preciso falar inglês para ser
respeitado no mundo. Eu tenho que falar a lingua de 175 milhões
de brasileiros para ser respeitado no mundo"
4 de junho, em São Paulo
"Eu não tenho diploma universitário, mas este
país vai ficar orgulhoso de ver como é que um torneiro
mecânico formado no SENAI pode cuidar deste país melhor
do que alguns doutores que governaram durante tantos anos"
21 de maio, em Balsas (MA)
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