Os críticos das
políticas econômicas ultraliberais forjaram a expressão "pensamento
único" para descrevê-las. Os protagonistas da futura equipe econômica
de Luiz Inácio Lula da Silva reafirmam, a cada pronunciamento, sua
adesão a esse receituário, que prima por colocar em primeiro plano
as expectativas de curto prazo dos mercados financeiros, em detrimento
da produção, do emprego e do investimento.
A nova equipe
praticamente declara em uníssono que todas as críticas do PT à doutrina
ultraliberal são letra morta. Talvez, como quer o futuro ministro
da Fazenda, Antônio Palocci, tudo isso não passe de um momento de
"transição". Mas ainda não se sabe o que seria o abandono futuro do
"pensamento único".
Ao anunciar uma passagem para um outro modelo, ainda desconhecido,
a pretexto de tranquilizar os críticos, o futuro ministro apenas aponta
para uma ficção que não contribui para reduzir a incerteza. Corre
o risco de desagradar tanto aos críticos que cobram o modelo alternativo
quanto aos conservadores que preferem a manutenção do status quo,
sem transição alguma.
Em alguns casos, como na indicação de Henrique Meirelles para o BC,
talvez tenha havido uma concessão pragmática à ideologia dominante.
Mas parece desgastada essa reação aos críticos que procura desqualificá-los
como "inflacionistas". A defesa da estabilidade de preços não está
em questão, mas sim as maneiras de obtê-la de forma sustentável.
A consequência prática dessa fórmula baseada no desemprego, na fragilidade
fiscal e na dependência financeira é a concentração de renda. É hipocrisia
falar em políticas sociais sem alterar o mecanismo econômico que produz,
incessante e mais rapidamente, desigualdade e exclusão.
A política econômica atual promove transferência de renda de setores
produtivos para interesses financeiros dentro e fora do país. Impostos
e tarifas são elevados para transferir mais renda de toda a sociedade
para o Estado.
Mas as taxas de juros elevadas transferem boa parte dessas receitas
para os setores financistas credores do Estado. Como parte expressiva
desses credores está no exterior ou são investidores brasileiros com
poupança no exterior, a transferência de renda precisa ocorrer em
dólar também.
Para ser solvente em dólares, o governo contém o crescimento e gera
expressivos saldos comerciais. Mas as reservas no Banco Central continuam
baixas, e o país, vulnerável. O ajuste que produz recessão é do tipo
criticado desde os anos 70 pelo professor Carlos Lessa, que estará
à frente do BNDES, novamente sujeito ao risco de operar como hospital
de empresas ou setores.
Para retomar o desenvolvimento é preciso melhorar a distribuição de
renda. Esse foi o lide da democratização, expectativa até hoje frustrada.
Sem formuladores capazes de criar políticas que revertam a concentração
de renda, a política econômica do governo Lula parece resignada à
mesma fórmula que fragiliza o Estado e a economia do país.
SEDUÇÕES
E COMPROMISSOS, por Clóvis Rossi
O velho discurso
social do PT ressurgiu finalmente anteontem na apresentação do futuro
ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a seus colegas de gabinete.
Depois de um período em que tocou só a música que os mercados adoram
ouvir, Palocci constatou: "Temos consciência de que os votos recebidos
por V. Excia. [Lula] vieram para corrigir a excessiva sedução pelos
mercados que marcou a atuação do governo nos últimos anos".
O restante do texto dividiu-se entre considerações de ordem técnica
sobre política econômica responsável, a novidade no discurso do PT,
e a antiga ênfase na necessidade de atacar a obscena desigualdade
que é a chaga aberta no organismo brasileiro.
Já aprendi que discurso é discurso, e nem sempre as palavras correspondem
à prática administrativa. Tome-se, por exemplo, o discurso de Fernando
Henrique Cardoso na sua primeira posse.
A ênfase foi a mesma de Palocci anteontem: combate à pobreza e à desigualdade.
A pobreza até que se reduziu, graças ao Plano Real, uma obra do governo
Itamar Franco, embora assinada pela equipe econômica montada por Fernando
Henrique. Mas a desigualdade não se moveu nem um milímetro sequer.
De todo modo, discursos têm um papel simbólico importante: podem servir
para cravar na agenda pública o que é relevante e o que é secundário
na ação do governo. No caso de FHC, o discurso inicial foi sendo claramente
arquivado em benefício do que Palocci classificou de "excessiva sedução
pelos mercados".
O problema é o limite curto dos discursos se não forem seguidos por
ações ou, ao menos, por outros movimentos simbólicos. Palocci já anunciou
que a prioridade imediata é a taxa de câmbio, seguida de "reduzir
ansiedades" e de "buscar o fluxo normal dos financiamentos e a extrema
responsabilidade no gasto público". Nada contra.
O diabo é se tais prioridades podem tomar tempo suficiente para que
"a sedução pelos mercados" suplante, de muito, o compromisso com o
social.
A
BRINCADEIRA ACABOU, por Eliane Cantanhêde
No dia em que
o Paloccinho deixou de ser paz e amor e virou um ministro da Fazenda
de discurso duro, contundente e implacável contra o atual governo,
tudo começou a mudar nas relações FHC-Lula, atual e futuro governo.
A única curiosidade do discurso de Palocci na primeira reunião ministerial,
na sexta-feira, foi deixar de fora críticas diretas à área de Saúde,
reduto de José Serra, adversário de Lula no segundo turno. Por quê?
Sei lá.
De resto, não sobrou pedra sobre pedra. Nem do governo FHC, nem do
jeitão paz e amor de Lula. Que, aliás, não se deu por satisfeito com
o discurso do seu ministro da Fazenda e engrenou a segunda.
Palocci desmontou a política econômica, o planejamento estratégico,
os resultados na educação, as prioridades sociais, a política externa
e não reconheceu nem o êxito da estabilidade, já que os preços sobem
e a inflação ameaça. Lula veio em seguida, prometendo continuar a
vasculhar tudo, descobrir barbaridades e abrir cada detalhe para a
sociedade. "Para não sermos culpados pelos erros dos outros."
Apesar disso, Lula avisou que não estava interessado em bate-boca.
Do Palácio do Planalto, a quatro dias de deixar o cargo, FHC reagiu
na linha do "quem ri por último ri melhor". Mandou o porta-voz retrucar
que, logo logo, o novo governo vai abandonar "a retórica de palanque"
e ver o que é bom para a tosse.
O que fica de tudo isso, após uma transição tão elegante, é um punhado
de dez folhas, com 18 itens, com as críticas do governo que entra
ao governo que sai. Até para comparação com o passado e, principalmente,
com o futuro. Entra ano, sai ano, o discurso é de estabilidade, crescimento
e justiça social.
Mas, como disse Palocci, "o quadro de distribuição de renda está inalterado
há 30 anos". A expectativa que Lula, Palocci e o governo do PT abrem
é de que esse quadro seja profundamente alterado nos próximos quatro
ou oito anos.
E que o discurso de Palocci não esteja perfeitamente atual na boca
e na posse do sucessor de Lula. A conferir.
ANO NOVO, GOVERNO NEM TANTO,
por Josias de Souza
Na oposição,
cheio de soluções, o ex-PT especializou-se em tirar gênios da garrafa.
Na bica de assumir o governo, pleno de problemas, o neo-PT estuda
um meio de fazê-los descer gargalo abaixo.
O petista Lula, sabe-se agora, é um tucano que ainda não tinha chegado
ao poder. Um tucano de porta de fábrica, mas um tucano.
Finalmente vitorioso, sem vocação para Aladin, radicalizou a sedutora
idéia de mudar radicalmente tudo. O medo do orçamento curto venceu
a esperança do palanque largo.
O ex-PT exerceu com maestria invulgar o monopólio da luz. O neo-PT,
prestes a entrar no túnel escuro que compõe o legado de FHC, procura
uma luz, qualquer luz, para pôr no fim. O ex-PT comportava-se como
cachorro que corre atrás do carro. Latia vorazmente. Dava a impressão
de que iria estraçalhar a viatura.
Súbito o carro parou. E o cachorro, em vez de morder os pneus, abana
o rabo para o pensamento único, o motorista metafórico que dirige
os destinos do Brasil. Ano novo, governo nem tanto, eis o slogan inaugural
de 2003.
Um ano em que quase tudo vai ficar como está para ver como é que fica.
Pelo menos na área mais importante, o setor que condiciona o desempenho
de todos os outros: a economia. Condenado a pôr os pingos nos seus
próprios "is", Lula talvez devesse auscultar o partido. Como assembleísmo
é coisa do passado, aplicaria um questionário escrito.
Dez perguntinhas bastariam. Todas de múltipla escolha, para evitar
respostas desagregadoras. As perguntas ficariam mais ou menos assim:
1) O discurso do neo-PT deve: a) atacar o que sempre defendeu; b)
defender o que sempre atacou; c) soprar o que antes mordia; d) morder
o que antes soprava.
2) O melhor epitáfio para o túmulo do ex-PT é: a) fui cobrar de Marx
a minha vida eterna; b) deixo a ideologia para cair na vida; c) aqui
jaz uma vítima do desaquecimento de demanda do mercado ideológico;
d) não contem mais comigo.
3) Sob o neo-PT, o futuro reserva ao Brasil: a) uma Pasárgada com
o Sarney no papel de amigo do rei; b) uma Pasárgada sem a mulher desejada
na cama escolhida; c) a purificação hoje do que ontem era execrável;
d) um amanhã de ontem que não chegou hoje.
4) Para provar que a política econômica mudou, Palocci deve: a) postar-se
à direita de Malan; b) conservar-se à direita de Malan; c) continuar
à direita de Malan; d) todas as opções anteriores.
5) Henrique Meireles é o melhor nome para um BC porque: a) é mais
Armínio do que o próprio Fraga; b) é mais Fraga do que o próprio Armínio;
c) pensa como o Armínio e age como o Fraga; d) age como o Armínio
e pensa como o Fraga.
6) Resta à companheira Heloísa Helena: a) pensar dez vezes antes de
calar; b) lembrar que em boca que engole sapo não entra mosquito;
c) perceber que o pragmatismo fala mais alto que o grito ideológico;
d) fingir-se de morta.
7) Para mostrar ao FMI que acabou a moleza, o neo-PT deve: a) escalar
o Suplicy para ciceronear a próxima missão; b) acomodar os homens
do Fundo em quartos sem TV; c) obrigar esse pessoal a carregar as
próprias malas; d) servir água quente e café frio nas reuniões da
Fazenda.
8) O trabalho deve finalmente cair nos braços do capital porque: a)
se o bom sentimento é uma utopia, melhor casar logo por dinheiro;
b) se a castidade caiu de moda, melhor aderir à comunhão de males;
c) dinheiro não compra felicidade, mas paga a reeleição; d) ou todos
têm uma chance no mercado ou o liberalismo não faz sentido.
9) O que melhor caracteriza o espírito revolucionário do neo-PT é:
a) confiar ao PL a missão de moralizar a pasta dos Transportes; b)
arrendar a sede do BC em Brasília ao BankBoston; c) amarrar as boas
intenções humanistas no toco da realidade; d) acabar com a ilusão
de que é possível fazer história sem se lambuzar.
10) À meia dúzia de insubmissos sobreviventes da esquerda recomenda-se
que: a) tentem vencer na vida, para virar direita; b) leiam o livro
de auto-ajuda Lanterna na Popa, do Roberto Campos; c) releiam o livro
de auto-ajuda Lanterna na Popa, do Roberto Campos; d) peçam asilo
ao Itamar na embaixada em Roma.