CIDADES NÃO FISCALIZAM
A QUALIDADE DA ÁGUA

Mariana Viveiros

Um ano depois de vencido o prazo dado pelo Ministério da Saúde, os municípios brasileiros ainda não cumprem totalmente a determinação de fiscalizar a qualidade da água que chega às casas de seus moradores, seja pelas torneiras, seja por meio de poços, bicas, chafarizes ou carros-pipa.
Pesquisa feita pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), no fim de 2003, em Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo, ouvindo secretarias estaduais e municipais da Saúde, mostra que nem mesmo as capitais desses Estados conseguem fazer tudo o que manda a portaria 1.469, de 2000, substituída em março deste ano pela 518.
Juntos, os quatro Estados têm cerca de 1/4 das 5.561 cidades brasileiras e somam quase 40% da população nacional.
Além de determinar os padrões que tornam a água própria para o consumo e definir as responsabilidades das empresas de saneamento, a norma também estabelece as obrigações dos órgãos de saúde municipais, que, segundo eles, não são 100% atendidas principalmente por falta de estrutura técnica e laboratorial, de pessoal treinado, de verba e de integração com o setor de recursos hídricos.
As secretarias municipais da Saúde deveriam, desde o ano passado, ter cadastro de todos os sistemas de abastecimento de água e das fontes alternativas (como poços, chafarizes) da cidade.
Deveriam ainda ter plano próprio de amostragem; auditar procedimentos de controle e práticas operacionais das empresas de saneamento; informar a população sobre a qualidade da água e eventuais riscos à saúde; avaliar o grau de vulnerabilidade de cada fonte; receber relatórios mensais da qualidade da água das distribuidoras e dos responsáveis pelas soluções alternativas, entre outros.
Tudo isso com três objetivos: aumentar a garantia de que a água para o abastecimento público não oferece riscos ao consumo, reforçar o controle de qualidade e intensificar a cobrança em cima dos responsáveis pelo cumprimento dos padrões de potabilidade ditados pela portaria federal.
Os dados da pesquisa do Idec mostram, porém, que só poucos itens são atendidos, outros o são parcialmente, e alguns nem isso.

Resultados
Na primeira categoria entram o recebimento dos relatórios mensais de qualidade fornecidos pelas empresas e a aprovação, por parte do poder público, dos planos de amostragem delas para controle da qualidade da água.
Na segunda, enquadra-se a maioria dos pontos destacados pelo Idec como mais importantes dentro da portaria, a exemplo da implementação de um plano próprio de amostragem da água.
Na terceira estão itens fundamentais como o fornecimento de informação ao consumidor e o controle das fontes alternativas -o maior desafio, na avaliação do instituto e das secretarias da Saúde ouvidas pela Folha.
A responsabilidade pela fiscalização é conjunta dos Estados e municípios e deve ser cobrada pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde.
O não-cumprimento da portaria implica multas para as empresas e suspensão de repasses do ministério para os órgãos públicos, mas nenhuma cidade foi punida até agora. "Estamos adotando uma atitude mais produtiva, de ajudar a cumprir as metas", justifica Guilherme Franco Netto, coordenador-geral de Vigilância em Saúde Ambiental, na Secretaria de Vigilância em Saúde.
"A inexistência da fiscalização não significa que a água é ruim, mas mostra que o poder público é totalmente dependente das concessionárias e que o consumidor não tem como exercer um controle social da água que usa. Isso é bastante preocupante principalmente porque muitos serviços de abastecimento estão sendo privatizados", diz Sezifredo Paz, coordenador-executivo do Idec.
A evolução, de 2000 a 2003, das internações por doenças transmitidas pela água nos Estados pesquisados retrata essa situação: embora não tenha havido um aumento significativo dos números (em São Paulo e no Paraná houve um crescimento pequeno no total), também não houve redução.
"Se essa é a situação no Sul e no Sudeste, imagine no Norte e no Nordeste", diz Paz. Ele reconhece, porém, as dificuldades relatadas pelas secretarias e pondera que há um esforço no sentido de cumprir a norma do ministério.

Secretarias relatam avanços progressivos
Embora defendam que o cumprimento total da portaria 1.469 é de fundamental importância para a saúde pública, as secretarias estaduais e municipais ouvidas pela Folha apontam dificuldades financeiras e de estrutura e pessoal para fazer tudo o que a norma determina. Ao mesmo tempo em que relatam avanços progressivos nesse sentido, afirmam que a portaria é "de Primeiro Mundo", mas o sistema de saúde, não.
Um dos coordenadores da elaboração da norma, Silvano Silvério da Costa, presidente da Assemae (associação dos serviços municipais de saneamento), admite que o prazo de dois anos dados aos municípios para se aparelhar a fazer a fiscalização foi pouco.
Ele disse não ter se surpreendido com os resultados da pesquisa do Idec, mas que o setor de saneamento e o de saúde "estão se movimentando", e a portaria não deverá virar letra morta.
Na cidade de São Paulo, nas 31 subprefeituras, são feitas ao menos quatro amostragens próprias de água por mês, afirma Helena Magozo, da Vigilância Ambiental da Coordenadoria de Vigilância em Saúde do município. A prioridade é dada às fontes alternativas e a locais em que costuma haver intermitência no abastecimento.
Magozo diz que a entrada tardia da cidade no SUS (Sistema Único de Saúde) atrasou a estruturação do controle da qualidade da água.
No Paraná, a Secretaria de Estado da Saúde afirma não receber relatórios de qualidade da água de apenas 33 das 399 cidades. "Apesar de não cumprirmos tudo, não há gente morrendo por aí por causa de água contaminada", diz Luiz Celso Rubio, da Divisão de Saneamento Ambiental.
Em Santa Catarina, são priorizados os municípios que têm mais problemas, inclusive os da Grande Florianópolis -15 cidades, das 293, são cobertas, afirma Denise dos Santos Lopes, da Diretoria de Vigilância Sanitária do Estado. Segundo ela, o maior problema é a estrutura laboratorial insuficiente. Neste ano, o número de laboratórios no Estado deve aumentar de cinco para oito.
Apesar de o Idec dizer não ter recebido respostas da cidade do Rio de Janeiro, a Vigilância Sanitária Municipal informou que faz 160 amostras mensais, começará a auditar os processos da Cedae em julho e tem cadastro parcial das fontes alternativas. Já a Secretaria de Estado da Saúde do Rio, disse, via assessoria de imprensa, que desde 2003 tem um trabalho integrado com os municípios.
As maiores empresas de saneamento (Cedae no Rio e Sabesp em São Paulo) afirmam, por sua vez, que a ajuda dos órgãos públicos no controle é bem-vinda, mas ambas dizem que já investem pesado para garantir a qualidade da água por elas distribuída.
Poços e falta de informação preocupam
Na avaliação do Idec, dois pontos da pesquisa sobre a fiscalização da qualidade da água sobressaem como destaques negativos: a falta de informação à população sobre o que ela consome e o quase total descontrole em relação às soluções alternativas, mais presentes nas regiões rurais e nas periferias das grandes cidades.
A desinformação impede a conscientização do consumidor e a sua conseqüente cobrança por uma água melhor, diz Sezifredo Paz, coordenador-executivo do instituto. No caso das fontes alternativas, o risco é maior. Sem o seu controle, as pessoas por elas servidas ficam mais vulneráveis a ingerir água contaminada, sobretudo por esgoto doméstico.
Em relação à divulgação dos indicadores de qualidade, poder público e empresas de saneamento dizem ainda não saber como seguir a determinação de fazer isso ao menos uma vez por ano com didatismo, sem causar "pânico" desnecessário e de forma que os dados não sejam indevidamente usados para fins políticos.
A dúvida pode ser esclarecida ainda neste semestre, diz Guilherme Franco Netto, da Secretaria de Vigilância em Saúde, órgão do Ministério da Saúde. Segundo ele, representantes da pasta, das companhias e do próprio Idec vão estudar e definir as regras para informar o consumidor. Paz defende que isso seja feito por meio das contas mensais.
Sobre as soluções alternativas, as secretarias estaduais e municipais da Saúde ouvidas pela Folha admitem que a fiscalização é um dos principais desafios porque faltam interação com os órgãos que cuidam dos recursos hídricos e informação até mesmo sobre a existência dessas fontes.
Só na cidade de São Paulo estima-se que 60% dos poços sejam clandestinos. Muitos são rasos e captam águas superficiais e, por isso, com maior risco de comprometimento, diz Helena Magozo, da Coordenadoria de Vigilância em Saúde do município.
 
Portaria nº 1469 (Dezembro, 2000)
Portaria nº 518 (Março, 2004)



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