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CIENTISTAS QUE VIRAM DESPACHANTES
 
WALTER NEVES

Há muito já se sabe que grande parte do que se construiu na ciência brasileira deveu-se mais a indivíduos do que a instituições.
No balaio comum das “instituições” coloco tanto aquelas às quais cabem o planejamento, a gestão e o fomento da ciência e tecnologia no país, quanto aquelas nas quais se dá o dia-a-dia da produção científica, em especial as universidades públicas.
Não menos “institucional” é o meio intelectual criado pelos próprios acadêmicos, cujo grau de benignidade ou de malignidade pode ou não ser estimulado ou legitimado pelas estruturas institucionais formais.
Entrei para o mundo acadêmico no final dos anos 70. Posso atestar que qualquer um que tentou, àquela altura, e durante os anos 1980, afrontar o corporativismo da improdutividade reinante na academia brasileira, pagou um preço pessoal indizível.
Muitos colegas, jovens brilhantes, foram derrotados por artimanhas maquiavélicas que só conheci no mundo acadêmico. Era necessário ter nervos de aço para sobreviver e muitos não os tinham. Procurar apoio nas estruturas institucionais formais era, na maioria das vezes, fonte adicional de indignação.
Estávamos emergindo de um Estado de exceção, que logrou instalar em todos os níveis da estrutura universitária mecanismos e personagens mediocrizados e mediocrizantes, aos quais o não fazer nada era mais que bem-vindo.
Respira-se, desde meados dos anos 90, um novo ar no ambiente acadêmico brasileiro, exceto em alguns bolsões ainda reticentes a terem sua produção escrita avaliada por parâmetros universais, sobretudo nas humanidades, onde ainda reina uma boa dose de corporativismo.
Mas nessa nova era, acredite ou não o leitor, o acadêmico produtivo não deixou de viver à beira de um ataque de nervos: do stress ideológico dos anos 70 e 80, passamos, no fim de século, ao stress operacional. Cobram de nós, agora, uma produção de Primeiro Mundo e nos colocam à disposição uma infra-estrutura técnico-administrativa de Quinto.
Isso é especialmente perverso em São Paulo. A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) tem possibilitado a nós, cientistas paulistas, acesso a recursos financeiros com valores, diversidade de cobertura e duração raramente equiparados a outros locais do planeta. Conseqüentemente, dinheiro para a pesquisa não tem sido, nos últimos anos, razão para não desenvolvermos, neste Estado, ciência com competitividade internacional.
Entretanto, não cabe à Fapesp, como a nenhuma outra agência de fomento à investigação científica, prover as universidades públicas de infra-estrutura técnico-administrativa básica e, muito menos, de interferir no gerenciamento dessa infra-estrutura operacional para que ela funcione de maneira eficiente e executiva, multiplicando assim os recursos canalizados de fora pelos pesquisadores.
Vivemos, assim, hoje, em São Paulo, um grande paradoxo. Por um lado temos uma agência de fomento de fazer inveja ao Primeiro Mundo, mas por outro, universidades públicas cujos meios operacionais remontam aos das repartições públicas do século 19.
Reitorias, pró-reitorias, institutos e departamentos são, muitas vezes, administrados por indivíduos sem o menor preparo ou talento nato para cargos executivos. A maioria dos funcionários, que certamente não sobreviveria a um dia de trabalho no mundo privado, lá fora — onde a velha e boa demissão funciona pra valer —, vê a nós docentes como um estorvo, um mal “desnecessário” e não como a legitimação da atividade-meio que exercem.
Trocar uma mísera lâmpada leva uma semana, conseguir linha para uma ligação local toma de 10 a 15 minutos nos momentos de pico, uma chamada interurbana, quando permitida, tem que ser precedida de formulários e mais formulários, a compra de um simples item de consumo leva semanas, senão meses, importações, meses ou anos e, pasmem os leitores, os líderes dos grandes laboratórios e dos grandes projetos não dispõem, sequer, de um office-boy ou de um auxiliar administrativo que os ajudem a minimizar o fardo dessa engrenagem emperrada.
Como coordenador de um projeto temático da Fapesp, sonho de qualquer cientista, passo hoje 80% de meu tempo fora da docência fazendo papel de “despachante de alto nível”, preenchendo intermináveis formulários, fazendo cotações de preços, atendendo fornecedores, digitando recibos, tirando cópias, subscritando envelopes, arquivando papéis, pregando dezenas de notas fiscais em papel sulfite, preparando balancetes e prestações de conta. Do sonho ao pesadelo!
Tempo que, se repassado a um auxiliar administrativo, me permitiria, com meus alunos de pós-graduação, pós-doutores e associados, duplicar ou mesmo triplicar a produção científica de meu laboratório, maximizando assim os recursos obtidos junto à Fapesp. Mas a universidade pública não reage! Passam-se os anos e ela não reage. Talvez porque ela saiba que pode contar com o sangue e os nervos daqueles para os quais a felicidade pessoal e a responsabilidade social passam necessariamente pelo ato de fazer ciência, mesmo que sob condições desumanas de stress cotidiano.

Walter Neves, é Professor do Instituto de Biociências da USP, onde dirige o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos. Foi autor do estudo sobre a idade e a origem da Luzi, o mais antigo fóssil humano das Américas, encontrado em Minas Gerais em 1975.

Revista Galileu, Ano 12, Número 133, agosto de 2002, p.88-99.