Há
muito já se sabe que grande parte do que se construiu na ciência
brasileira deveu-se mais a indivíduos do que a instituições.
No balaio comum das instituições coloco tanto
aquelas às quais cabem o planejamento, a gestão e o fomento
da ciência e tecnologia no país, quanto aquelas nas quais
se dá o dia-a-dia da produção científica,
em especial as universidades públicas.
Não menos institucional é o meio intelectual
criado pelos próprios acadêmicos, cujo grau de benignidade
ou de malignidade pode ou não ser estimulado ou legitimado pelas
estruturas institucionais formais.
Entrei para o mundo acadêmico no final dos anos 70. Posso atestar
que qualquer um que tentou, àquela altura, e durante os anos
1980, afrontar o corporativismo da improdutividade reinante na academia
brasileira, pagou um preço pessoal indizível.
Muitos colegas, jovens brilhantes, foram derrotados por artimanhas maquiavélicas
que só conheci no mundo acadêmico. Era necessário
ter nervos de aço para sobreviver e muitos não os tinham.
Procurar apoio nas estruturas institucionais formais era, na maioria
das vezes, fonte adicional de indignação.
Estávamos emergindo de um Estado de exceção, que
logrou instalar em todos os níveis da estrutura universitária
mecanismos e personagens mediocrizados e mediocrizantes, aos quais o
não fazer nada era mais que bem-vindo.
Respira-se, desde meados dos anos 90, um novo ar no ambiente acadêmico
brasileiro, exceto em alguns bolsões ainda reticentes a terem
sua produção escrita avaliada por parâmetros universais,
sobretudo nas humanidades, onde ainda reina uma boa dose de corporativismo.
Mas nessa nova era, acredite ou não o leitor, o acadêmico
produtivo não deixou de viver à beira de um ataque de
nervos: do stress ideológico dos anos 70 e 80, passamos, no fim
de século, ao stress operacional. Cobram de nós, agora,
uma produção de Primeiro Mundo e nos colocam à
disposição uma infra-estrutura técnico-administrativa
de Quinto.
Isso é especialmente perverso em São Paulo. A Fapesp (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) tem possibilitado
a nós, cientistas paulistas, acesso a recursos financeiros com
valores, diversidade de cobertura e duração raramente
equiparados a outros locais do planeta. Conseqüentemente, dinheiro
para a pesquisa não tem sido, nos últimos anos, razão
para não desenvolvermos, neste Estado, ciência com competitividade
internacional.
Entretanto, não cabe à Fapesp, como a nenhuma outra agência
de fomento à investigação científica, prover
as universidades públicas de infra-estrutura técnico-administrativa
básica e, muito menos, de interferir no gerenciamento dessa infra-estrutura
operacional para que ela funcione de maneira eficiente e executiva,
multiplicando assim os recursos canalizados de fora pelos pesquisadores.
Vivemos, assim, hoje, em São Paulo, um grande paradoxo. Por um
lado temos uma agência de fomento de fazer inveja ao Primeiro
Mundo, mas por outro, universidades públicas cujos meios operacionais
remontam aos das repartições públicas do século
19.
Reitorias, pró-reitorias, institutos e departamentos são,
muitas vezes, administrados por indivíduos sem o menor preparo
ou talento nato para cargos executivos. A maioria dos funcionários,
que certamente não sobreviveria a um dia de trabalho no mundo
privado, lá fora onde a velha e boa demissão funciona
pra valer , vê a nós docentes como um estorvo, um
mal desnecessário e não como a legitimação
da atividade-meio que exercem.
Trocar uma mísera lâmpada leva uma semana, conseguir linha
para uma ligação local toma de 10 a 15 minutos nos momentos
de pico, uma chamada interurbana, quando permitida, tem que ser precedida
de formulários e mais formulários, a compra de um simples
item de consumo leva semanas, senão meses, importações,
meses ou anos e, pasmem os leitores, os líderes dos grandes laboratórios
e dos grandes projetos não dispõem, sequer, de um office-boy
ou de um auxiliar administrativo que os ajudem a minimizar o fardo dessa
engrenagem emperrada.
Como coordenador de um projeto temático da Fapesp, sonho de qualquer
cientista, passo hoje 80% de meu tempo fora da docência fazendo
papel de despachante de alto nível, preenchendo intermináveis
formulários, fazendo cotações de preços,
atendendo fornecedores, digitando recibos, tirando cópias, subscritando
envelopes, arquivando papéis, pregando dezenas de notas fiscais
em papel sulfite, preparando balancetes e prestações de
conta. Do sonho ao pesadelo!
Tempo que, se repassado a um auxiliar administrativo, me permitiria,
com meus alunos de pós-graduação, pós-doutores
e associados, duplicar ou mesmo triplicar a produção científica
de meu laboratório, maximizando assim os recursos obtidos junto
à Fapesp. Mas a universidade pública não reage!
Passam-se os anos e ela não reage. Talvez porque ela saiba que
pode contar com o sangue e os nervos daqueles para os quais a felicidade
pessoal e a responsabilidade social passam necessariamente pelo ato
de fazer ciência, mesmo que sob condições desumanas
de stress cotidiano.
Walter
Neves, é Professor do Instituto de Biociências
da USP, onde dirige o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos.
Foi autor do estudo sobre a idade e a origem da Luzi, o mais antigo
fóssil humano das Américas, encontrado em Minas Gerais
em 1975.
Revista
Galileu, Ano 12, Número 133, agosto de 2002, p.88-99.
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