GRU – É cada um por si?
G. Dias – É, você olha o mundo do Sul, por exemplo. Há uma boa organização
cooperativa por lá. Existe a consciência do problema, debate-se. Mas o que
sai de concreto? Estratégias individuais. Algumas cooperativas se articulam
com indústrias e fazem projetos pontuais. Não há grandes linhas de
negociação nacional.
GRU – Como obter um projeto único
num setor cindido por interesses
conflitantes?
G. Dias – O nível do conflito hoje é realmente maior que no passado. Há o
conflito dos grandes com os pequenos. Dos com muita e dos com pouca terra.
Dos com muito crédito e dos com pouco. Dos emergentes e dos decadentes.
O Brasil inteiro está assim. Mas a distribuição de renda no campo é muito pior
que na cidade e isso dificulta tudo. O fosso entre as partes não deixa ver os
interesses comuns.
GRU – Muitos imaginaram que o mercado
poderia reacomodar o
quebra-cabeças nacional.
G. Dias – Houve uma tentativa de transferir funções de regulação, do Estado
para o mercado. Mas não por obra de uma negociação ou de um consenso. O
que aconteceu é que o Estado quebrou. A hiperinflação destruiu o Estado
brasileiro nos anos 80. Ele não conseguia mais prover o crédito agrícola, o
grande elemento coordenador do sistema. Teve que abdicar também da política
de preços mínimos – a moeda de repartição do risco entre o produtor e a
sociedade.
GRU – A própria abertura das
importações foi assim, um processo em que o
governo foi conduzido ao invés de conduzir?
G. Dias – Eu acho que sim. Tanto a abertura comercial como tudo o mais. A
única renegociação séria que o Brasil fez no processo de redemocratização
foi
a do arcabouço da cidadania. No resto, manteve-se o emaranhado de
interesses conflitantes. Fomos levados pelos fatos.
GRU – Como essa dinâmica marcou
a estrutura produtiva do campo?
G. Dias – Houve um desdobramento positivo. Surgiu um grupo de empresários
agrícolas, não mais produtores tradicionais, mas empresários modernos. Eles
fizeram a leitura correta da situação: fim do crédito oficial, maior competição
dentro do país, mudanças profundas na estrutura de abastecimento, indústrias
mais organizadas a comprar direto da agricultura, exigências de barateamento
da produção etc. Quem entendeu a nova lógica do abastecimento interno e
pode se organizar viabilizou-se.
GRU – Quantos conseguiram preencher
esses requisitos?
G. Dias – Aqueles que se reciclaram para trabalhar com capital próprio, que
venderam parte do patrimônio, diminuíram a escala da operação e fugiram do
banco. Do grupo da agricultura patronal não são mais que 100 mil, uns 10% do
total.
GRU – E na área da agricultura
familiar?
G. Dias - Aqui temos umas 700 a 800 mil unidades que não estão passando
tanto aperto. É o que dá para inferir do censo de 95/96. São pequenos mas
organizados. A maioria integrada em sistemas produtivos que têm na indústria
a liderança do processo.
GRU - Frango, por exemplo?
G. Dias - Frango e agora leite também. Quem conseguir um custo abaixo de
20 centavos por litro vai sobreviver. Outras regiões estão se desmantelando,
caindo aos pedaços em função de um processo no qual os atores, como já
disse, participam individualmente.
GRU - Em resumo: de toda a agricultura,
o que é comprovadamente viável
hoje?
G. Dias - Não mais que 30% ou 40% da área em produção.
GRU - Menos da metade da área
agrícola do país?
G. Dias - É isso. Mas esse pedaço, é importante que se diga, deve estar
contribuindo com algo como 80% a 90% da oferta total de alimentos. É um
núcleo muito eficiente.
GRU - Socialmente há um problema
explosivo. Mas, do ponto de vista do
abastecimento então, não há
riscos?
G. Dias - O problema social é grave, aprofundado nos anos 90 por conta da
crise econômica geral. Porém, é mais do que isso. Há uma questão que eu
levanto sem ter muita clareza ainda, mas que é importante destacar: a
precariedade de nosso mercado de capitais. Todo o financiamento da
economia hoje não passa de 26% do PIB. Já foi 50% do produto nos anos 60.
Em economias desenvolvidas vai a 130%, com fatia importante de contratos de
longo prazo. Isso dá uma idéia de que temos um problema estrutural sério para
crescer.
GRU - Não há fôlego
interno?
G. Dias - Exato. Temos uma instabilidade muito grande. O contrato de
empréstimo aqui não é algo tranqüilo. Nosso tecido financeiro espelha o tecido
social: há baixíssimo nível de integração entre as partes.
GRU - Como isso pode influir na oferta
agrícola?
G. Dias - Com uma estrutura de financiamento tão crítica, é de se supor que o
processo de seleção vá gerando um número muito pequeno de vencedores.
Uma base muito estreita.
GRU - Já é um gargalo?
G. Dias - É uma situação de risco. Mesmo o núcleo eficiente carrega um ônus
financeiro elevado. Ele é todo autofinanciado. Não há colaboração nem dos
outros setores da cadeia agroindustrial para dividir o risco. Há exceções, mas
é a grande tendência. Isso enrijece a base competitiva da agricultura.
GRU - Há sinais de esgotamento
financeiro desse núcleo?
G. Dias - Há indícios. Para se preservar de um risco muito grande, o sujeito
investe em conta-gotas. Um sintoma é o desequilíbrio entre despesas com
fertilizantes e defensivos versus outros gastos. Equipamentos, por exemplo, ou
conservação do solo. Opera-se no curto prazo. Se o país voltar a crescer,
podem ocorrer problemas de abastecimento.
GRU - Não tem folga?
G. Dias - Exportamos cerca de 20% a 25% do produto agrícola. Mas
importamos o equivalente a mais de 10% dele. Portanto, o líquido embarcado é
da ordem de 10% a 13% do produto. Essa seria a folga.
GRU - Mas o país precisa dessa
receita cambial.
G. Dias - Exato. Os cálculos do governo, porém, mostram que estamos
marcando passo aí também. A agricultura está perdendo capacidade de gerar
excedentes externos. É uma contradição. Do ponto de vista macroeconômico,
o Brasil precisa aumentar o volume exportável para atenuar os
constrangimentos das contas externas.
GRU - Se a distribuição
de renda melhorar, o quadro se complica?
G. Dias - Se formos para uma taxa de crescimento de 5% ao ano, com leve
distribuição de renda, o núcleo competitivo da agricultura não dará conta de
atender à demanda interna e à exportação. É preciso um volume maior de
investimentos, disseminado num universo mais amplo de agricultores, inclusive
para atenuar a tensão social.
GRU - Voltamos ao problema da fonte
de recursos?
G. Dias - É o gargalo central. O financiamento com dinheiro próprio bateu no
limite do risco suportável. Na agricultura, toda vez que o sujeito investe no
longo prazo, ele fica desguarnecido em termos de capital de giro. Isso é
proibitivo numa atividade em que a flutuação da renda é intrínseca ao negócio.
GRU - Banco não é opção?
G. Dias - Quem recorreu a capitais de terceiros nos últimos dez a 12 anos
quebrou.
GRU - Qual o volume da inadimplência
rural?
G. Dias - Uns 18 bilhões de reais para um PIB agrícola de 80 bilhões de reais.
Ou seja, algo como 22% a 23% dele.
GRU - É uma dívida pagável?
G. Dias - Mais de 50% desse débito estão nas mãos de produtores cujo futuro
é incerto. Para dizer o mínimo.
GRU - Inclui que parcelas do setor
patronal?
G. Dias - Metade dos 800 mil estabelecimentos patronais terá que passar por
imensas transformações para sobreviver. Ou fazem isso, ou não terão mais
jeito.
GRU - Há risco de quebradeira?
G. Dias - Agricultura não é comércio. Não quebra de uma hora para outra. É
um processo longo. O sujeito vai comendo o patrimônio, reduz o padrão de
vida, descuida da manutenção... Pode durar anos. Não é como no mundo
urbano.
GRU - Uma longa agonia?
G. Dias - Justamente. Por isso gera tensões violentas. Famílias vão se
decompondo. Os filhos não têm horizonte na terra. Um mal-estar irradia-se por
toda a região. As cidadezinhas murcham. O comércio desaba. A vida fica
amarga para todos. Cresce a desesperança e a revolta.
GRU - O MST reflete esse cenário?
G. Dias - O MST é fruto desse processo. Tem um componente sulista muito
expressivo, especialmente gaúcho, por quê? Verdade seja dita, e aqui vai uma
autocrítica por não ter avaliado isso mais depressa: o Rio Grande do Sul foi
triturado pela abertura das importações e pela emergência do Mercosul.
Merece compensações, claro.
GRU - Qual a magnitude da exclusão
entre agricultores familiares?
G. Dias - São mais de 4 milhões de unidades familiares no país e talvez 2
milhões de famílias típicas de trabalhadores. No total, quase 6 milhões de
famílias. Um pedaço grande está desestabilizado há mais de três décadas.
Talvez um terço já esteja com um pé fora do campo. Faz parte da pobreza
urbana. Não é nenhuma glória isso, mas possivelmente as soluções nesse
caso tenham que ser buscadas fora do âmbito agrícola. Sobram no entanto 4
milhões de famílias amarradas ao futuro do espaço rural.
GRU - Há ainda um complicador
regional nisso tudo?
G. Dias - Sim, as coisas não se distribuem de forma homogênea. Existem
áreas mais explosivas. Áreas de aprisionamento de populações rurais em
situações de decadência.
GRU - Nordeste, por exemplo?
G. Dias - É o caso mais gritante. A modernização traz implícito um
componente de diferenciação em que o enriquecimento de algumas regiões
aprofunda a decadência de outras. No Nordeste vivem 60% da pobreza rural
brasileira. Não é uma miséria nova. Ficou enclausurada aí durante séculos
num equilíbrio imposto pela hegemonia política dos detentores locais do poder.
Agora, porém, a decadência de alguns desses segmentos, o canavieiro, por
exemplo, e a modernização de outros romperam a estabilidade antiga. As
tensões vão aumentar.
GRU - No passado, a alternativa ao
conflito era a migração para o Sul.
G. Dias - Não há mais opção de fuga. A estrutura de emprego urbano mudou,
e o cerrado nordestino - o Piauí, o Maranhão - não ficou para os pobres. Foi
ocupado empresarialmente.
GRU - O que sobra?
G. Dias - O conflito da modernização não constitui privilégio brasileiro. Foi
assim em todos os lugares: cresceram as desigualdades, concentrou-se a
renda, aumentou a exclusão. Aconteceu na Europa também, no final do século
19, começo do século 20, quando modernizou sua agricultura. A válvula de
escape deles foi enviar seus excedentes populacionais para países carentes
de mão-de-obra, o chamado Novo Mundo. Foi assim que italianos, alemães,
poloneses vieram parar no Brasil.
GRU - Essa solução não
existe mais...
G. Dias - Migrações maciças são inconcebíveis atualmente. Esse é
o ponto: o
Mundo Novo, no nosso caso, tem que ser construído aqui dentro mesmo. Em
primeiro lugar, a sociedade precisa entender que não é um desafio de natureza
rural. É uma questão nacional.
GRU - O governo fixou em 11,2 bilhões
de reais o crédito agrícola para a
próxima safra. O senhor fala na necessidade
de 42 bi para rearticular o setor.
G. Dias - É só um exercício para evidenciar o hiato que existe entre o
disponível e o necessário. Agora, além do volume, há o problema de quem vai
repassar os recursos: o sistema bancário já se mostrou inapto.
GRU - Mesmo porque 40% dos municípios
nem têm agências.
G. Dias - E a tendência é uma concentração ainda maior. Mas o impasse não
é apenas logístico. Os bancos são avessos à pulverização do crédito
e ao
risco agrícola. O resultado é que o custo de rolagem dos débitos acaba
sempre caindo sobre o governo. Ele já gasta 1,2 bilhão de reais por ano com
isso. Um dinheiro jogado fora.
GRU - Desigualdades regionais, crédito
subsidiado, reforma agrária, políticas
compensatórias. Essa terminologia não
havia sido varrida pela globalização?
G. Dias - O pêndulo deslocou-se fortemente para o foco externo num momento
em que era crucial credenciar o país para competir no novo cenário
internacional. Creio mesmo que o ajuste fiscal e as medidas de abertura
comercial apontam na direção certa. Só que a agenda interna não
desapareceu. As tensões estão dizendo isso e recomendam que se busque
um novo ponto de equilíbrio. No campo, isso requer, de saída, uma nova
estrutura de financiamento.
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