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Ilha Solteira enfrenta a crise hídrica gerada pela seca dos últimos anos
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Projetada em torno de uma usina hidrelétrica na década de 1970, a cidade do noroeste paulista se adapta à estiagem

Em uma tarde quente de dezembro, surge de uma viela um homem que grita para os céus: “Obrigado, meu Deus! Está chovendo em Ilha Solteira!”. Ele continua a gritar de alegria até alcançar a Praça dos Paiaguás. Localizada no centro da cidade, a praça recebeu esse nome para homenagear a tribo indígena homônima, conhecida por suas habilidades como canoeiros e guerreiros que nunca recuavam diante do inimigo. O homem se deixa molhar e segue caminhando até fugir do alcance dos meus olhos, confundindo-se entre os milhares de luzes que enfeitam a praça e a Avenida Brasil, encantando adultos, crianças e turistas. A caixa-d’água, um monumento funcional com 30 metros de altura, ostenta a iluminação de uma árvore de Natal de dar inveja a muitas capitais do país. Relâmpagos anunciam chuva, enquanto as crianças encenam o espetáculo O Milagre do Natal. Mas não há graça divina, são apenas alguns pingos d’água e, nos dias seguintes, um calor que supera os 30 °C volta a castigar a região. Chuva em Ilha Solteira, cidade que abriga uma das maiores hidrelétricas do país, é agora um golpe de sorte, quase extinta – como os paiaguás.

Estamos agora em maio de 2015, e, assim como no último Natal, as águas dos rios Paraná, Tietê, São Francisco, Uruguai, entre outros, estão passando a toda velocidade, fazendo girar as turbinas das hidrelétricas. Com uma economia abundante em recursos naturais, o Brasil cresceu e se desenvolveu tendo como base para a matriz energética as hidrelétricas, uma fonte limpa e renovável de energia. Em períodos de poucas chuvas, as usinas diminuem a capacidade de geração para que possam reter parte dessas águas no reservatório. É aí que entra em ação o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), órgão responsável pela coordenação e controle da operação da geração e transmissão de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional. O sistema aciona outras fontes de energia, como as termelétricas espalhadas pelo país, para que o abastecimento não seja prejudicado. Tudo automático. As fontes alternativas estão a todo o vapor (inclusive aquelas baseadas em combustíveis fósseis, como o carvão, que polui o meio ambiente) para garantir que o país não pare – as indústrias e empresas possam continuar produzindo e nós possamos acompanhar pela TV a partida de futebol do nosso time favorito, navegar na internet ou que não percamos o que irá acontecer com o personagem da novela ou série.

As águas dos reservatórios ajudam a garantir o abastecimento energético do Brasil e são também o modo de vida e fonte de renda para muitas famílias, empresas e o governo local. Quando um reservatório está em seu ponto de equilíbrio, acontece o que os engenheiros chamam de “situação ótima” para todos: irrigação, geração de energia, piscicultura, pesca, transporte, abastecimento para consumo humano etc. O problema é que o que antes era abundante agora é alvo de disputa. “A ganância do homem acabou com os peixes”, queixa-se Claudionor Gonçalves Gomes, o Mozinho, pescador durante o dia e proprietário de uma peixaria à noite. Ele chegou à cidade em 1972, quando a usina de Ilha Solteira ainda estava em construção. “Eram peixes grandes, bonitos e agora não temos quase nada.” Pergunto a ele se não seria melhor abandonar a pesca e dedicar-se apenas à peixaria. “Eu pagava mil e seiscentos reais na conta de luz aqui da peixaria, agora são mil e novecentos. Não dá, tenho que me virar como posso, essas termelétricas são caras.”

Impacto no turismo
Mozinho é mais um personagem em uma das maiores crises hídricas da história recente. Desde 1986, quando iniciou-se o monitoramento na região, não se via algo assim. No noroeste paulista, fronteira com o Mato Grosso do Sul, a usina hidrelétrica de Ilha Solteira está com seu reservatório na capacidade mínima: 0%. O nível mais baixo do país. “Em função do atual regime hidrológico, o nível do reservatório da usina encontra-se em cota inferior ao mínimo útil operacional, fixado em 323 metros. À meia-noite de 30 de novembro de 2014, o nível do reservatório estava na cota de 319,5 metros”, informa a assessoria de imprensa da Cesp (Companhia Energética de São Paulo). Sua capacidade máxima, a “situação ótima”, seria 328 metros. Ainda assim, a usina segue em operação, trabalhando com sua capacidade mínima, por ordem e controle do ONS. Essa diferença aparentemente pequena – por volta de 9 metros – é suficiente para fazer grandes estragos na economia. As margens do reservatório recuaram até 100 metros nas praias de Ilha Solteira e municípios vizinhos, como Santa Fé do Sul e Pereira Barreto, prejudicando o turismo – importante atividade econômica da região. E reativar esse setor não é tarefa simples. “Muitos dos turistas que nos visitam são pessoas que já moraram aqui e retornam para ver a família e matar a saudade”, diz, com o conhecimento de quem é pioneiro na exploração do turismo na região, José Aparecido Trevisoli, proprietário de um restaurante que fica à margem da represa. “O trem está feio”, avalia. José se refere à forte queda no movimento. As margens do rio ficavam próximas ao seu estabelecimento, mas com o recuo das águas os turistas agora precisam se deslocar dezenas de metros. Alguns preferem ignorar o restaurante e estacionar seus carros mais próximos da margem. José volta seus olhos para as águas. “Já atendi até 3 mil pessoas por dia. Hoje são 150. Dependo disto aqui, não tenho nenhuma outra fonte de renda. Tenho mulher e dois filhos. Fazíamos até uma reservinha para a época de baixa temporada. E agora? Como vou fazer?”, resigna-se.

Ele me chama para caminhar pela praia como se quisesse me contar um segredo. Paramos a certa distância e então ele volta-se para o restaurante novamente. Apoia uma das mãos sobre os meus ombros e aponta para um rapaz que está servindo uma porção de peixe à milanesa em uma mesa com três turistas. “Num dia de domingo como este, eu tinha até 15 funcionários. Demiti todo mundo. Agora somos eu, meu filho, minha nora e minha esposa. Veja lá o meu filho, ele está fazendo tudo: atende, faz a porção de tira-gostos, leva na mesa e fecha a conta. Ele cobra o escanteio e cabeceia para o gol.”

Continuamos a caminhada e percebo que os outros estabelecimentos estão ainda mais vazios que o de José. “Estão todos mal. Mas tenho a expectativa de que os turistas ainda vão vir. Se eu vender 50% do que vendi no ano passado, para mim está ótimo.” E se isso não acontecer?, pergunto a ele. “Tem que acontecer.”

http://msalx.viajeaqui.abril.com.br/2015/05/21/1656/5tY2z/_mg_1583.jpeg?1432316128

Com capacidade para manter uma reserva de águaaté 328 metros acima do nível do mar, a usinahidrelétrica de Ilha Solteira está operando abaixodo seu nível mínimo, estabelecido em 323 metros - Foto: Marcio Pimenta

Assim como o turismo, outros setores já sentem o impacto. Toneladas de peixes morrem por falta de oxigênio na água das pisciculturas. Residências ficam sem água potável porque as bombas não conseguem puxar com o volume em níveis tão baixos. A irrigação na agricultura é interrompida pelo mesmo motivo. Barcaças transportadoras de grãos estão paralisadas desde maio de 2014 por falta de profundidade no calado-d’água, o que torna necessário fretar caminhões, elevando os custos. Até mesmo termelétricas movidas pela cana-de-açúcar perdem força, pois a cana apresenta baixa produtividade por falta de chuvas.

A cidade que nasceu para iluminar um país
“A cidade que nasceu para iluminar um país”, me diz Mozinho, de forma quase poética. Os moradores de Ilha Solteira têm muito orgulho dela e sabem do papel fundamental que exercem para o Brasil. A cidade foi planejada. Surgiu da necessidade de abrigar o enorme contingente de operários que chegaram para trabalhar na construção da usina. Na década de 1970, era a maior obra de engenharia do país e uma das maiores do mundo. Localizada às margens do rio Paraná, Ilha Solteira foi construída com base em uma hierarquia de moradias que segregava os trabalhadores de acordo com as categorias funcional e salarial. Os segmentos das residências partiam do nível 1, cerca de 100 m² – destinados a operários não especializados, ajudantes, serventes, vigias e zeladores –, até o nível 6, com 560 m² – reservados a encarregados de nível universitário, profissionais liberais como médicos, engenheiros, arquitetos, economistas, assistentes sociais. Havia três clubes sociais para entretenimento dos diversos níveis de trabalhadores. Os que eram classificados como 1 ou 2 não podiam frequentar as piscinas destinadas aos trabalhadores do nível 3 e do 4, e assim por diante. Mas o tempo anuviou tais barreiras.

Meu interlocutor fala pausadamente. Enquanto aguardo sua próxima frase, noto a luz do Sol invadindo a janela e inundando a sala de calor. “Meu vizinho perdeu 20 toneladas de peixe no ponto de comercialização”, conta Olair José Isepon, secretário do Departamento de Agronegócios, Meio Ambiente e Pesca de Ilha Solteira, enquanto enxuga com um lenço branco o suor que lhe escorre pela testa. “Num dia que esquentou bastante, sol forte, com tempo nublado e abafado, faltou oxigênio na água. Emprestei meu trator para ele soterrar os peixes na vala que a prefeitura fez.” A estiagem que se abate sobre as regiões Sudeste e Centro-Oeste do país desde meados de 2012 não dá sinais de trégua. “Precisamos que chova em Minas Gerais e Goiás, onde ficam as nascentes. Chover aqui não adianta”, explica.

O telefone toca. É do gabinete do prefeito. Olair e eu seguimos até a sua sala e somos recepcionados em um ambiente refrigerado, com suco de néctar de laranja. O prefeito, Bento Carlos Sgarbosa, é engenheiro e trabalhou nas obras de outras usinas. Esteve na Califórnia, onde acompanhou o drama da seca que atinge a região há quatro anos. Assim como os países que dependem dos royalties do petróleo, cidades-sede de hidrelétricas recebem grandes somas das usinas. E da mesma forma sofrem da “maldição dos recursos naturais”, também conhecida como o paradoxo da abundância. A economia de Ilha Solteira depende basicamente das receitas geradas pela hidrelétrica. O uso desses recursos permitiu investimentos em setores básicos do desenvolvimento, o que explica o alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) na cidade – 0,812. Por outro lado, levou a economia do município a uma acomodação e pouco incentivo a outros setores. Com a redução das atividades da hidrelétrica, o município irá arrecadar menos. “As perdas que estamos tendo na arrecadação hoje só saberemos de fato daqui a dois anos. Se a usina parar, seria uma catástrofe para nós. O município praticamente não teria receita. Educação, saúde, segurança seriam atingidas imediatamente”, analisa Bento Sgarbosa, que é também vice-presidente da Amusuh (Associação dos Municípios Sedes de Usinas Hidrelétricas). Ele me conta que no Brasil existem mais de 700 cidades que foram alagadas para que hidrelétricas pudessem existir.

Problemas na agricultura
A agricultura também sofre com a falta de água. Na cana-de-açúcar – quase uma monocultura na região – a perda de produtividade foi significativa. Não se chegou próximo ao valor de referência de 80 t/ha (toneladas de cana por hectare) na última safra. Algumas usinas trabalharam com uma produtividade de apenas 50 t/ha. É o que explica Fernando Braz Tangerino Hernandez, professor e pesquisador do Departamento de Fitossanidade, Engenharia Rural e Solos da Unesp (Universidade Estadual Paulista), enquanto, na grande tela do monitor, corre o cursor do mouse pelo Google Maps. “A usina de Santa Adélia, uma das maiores da região, é de cogeração, ela produz ao mesmo tempo álcool e energia. Ela queima bagaço e gera energia. Se ela dependesse somente da venda de álcool, certamente teria demitido funcionários”, diz, enquanto analisa os dados nos monitores que estão na parede do laboratório. Quanto mais falamos do tema, mais ele se empolga. “As usinas que não possuem cogeração estão em uma situação crítica. Temos 453 usinas de açúcar e álcool no país. Dessas, 83 estão fechadas ou em recuperação.”

Como se não fosse o bastante, ele levanta seu corpo de quase 2 metros para enfatizar que “o fato concreto é que os extremos estão cada vez mais frequentes. O seco está cada vez mais seco e as chuvas estão cada vez mais intensas e localizadas”. Ele fala com conhecimento de causa, com base no relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) de 2013. Esse estudo, realizado por 350 cientistas, prevê um cenário alarmante se os níveis de emissões de gases causadores de efeito estufa permanecerem altos. A agricultura e o setor de energia do Brasil poderão ser fortemente impactados, sob risco de queda brusca do Produto Interno Bruto (PIB) e até de segurança alimentar. Segundo o documento, a temperatura no Brasil pode aumentar de 3 ºC a 6 ºC até 2100. O país sofreria ainda mais com uma possível escassez de chuvas, como acontece agora. “Temos que desenvolver a resiliência e aprender a conviver com isso. Recompor as matas ciliares, plantio direto, conservação do solo, interceptação da água das chuvas, proteger nossas nascentes. Precisamos de árvores!”, exclama o professor e bate na mesa.

Onde há riscos, há também oportunidades
A expressão de tranquilidade de Antonio Ramon do Amaral Neto é de quem soube se preparar para a crise. Sua empresa produz hoje 10 toneladas por mês de peixe e as obras estão aceleradas para que até o final de 2015 esse valor chegue a 25 toneladas. “Tomamos decisões estratégicas antes da seca”, fala ao se recostar em sua cadeira de couro e buscar o controle do ar-condicionado. “Tive colegas empresários que perderam 70% da produção. Por sorte eu havia transferido minhas instalações para um local novo, com maior profundidade.” Ele é sócio-diretor da Brazilian Fish, empresa que atua desde o cultivo de peixes até a embalagem de filés que chegam às prateleiras dos supermercados. “Há uma forte demanda e pouca oferta no mercado de tilápias.” Com a seca, os preços dispararam. Somente entre outubro e novembro houve dois aumentos de preço. “Em breve ficará tão caro que o brasileiro não poderá consumir filé de tilápia”, completa.

Sorte que não agraciou o produtor Fabio Brandão, da Piscicultura Guanabara. Ele perdeu 60% da sua capacidade de produção e os sócios-investidores cancelaram 450 mil reais que estavam previstos para serem investidos em 2014.

Percebo, afinal, essa é a / Pasárgada de Manuel Bandeira / oculta em oito milhões / de metros cúbicos de água / Eis aí meus caros amigos: / a vocês uma boa sorte / e muito progresso e alegria. Carlos Drummond de Andrade escreveu em 1973 o poema Os Submersos em homenagem ao município de Rubineia, 80 quilômetros mais ao norte de Ilha Solteira. Alagada pelas águas durante a construção da hidrelétrica, a cidade levava em suas ruas nomes de famosos poetas brasileiros. Menos poético, Brandão me responde quando pergunto quais as expectativas para o próximo ano. “Medo.”

National Geographic Brasil, 15 de agosto de 2015.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
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