A
escassez de água e o rodízio de abastecimento, instituído
no mês passado em parte da região metropolitana de São
Paulo, não são só um capricho da natureza, um azar
provocado pela falta de chuva: têm a ver com todo mundo, incluindo
você e os políticos que ajudou a eleger. Cerca
de 440 mil moradores de parte da Grande São Paulo estão
recebendo água por 36 horas e ficando sem abastecimento por igual
período. Não se sabe quando termina o racionamento.
Como é
comum, tende-se a buscar só um culpado mais próximo e
isolado para qualquer problema. No caso, seria a seca. É
claro que a falta de chuva agrava o problema. Mas, em questões
ambientais, as relações são complexas e profundas.
Geralmente, os distúrbios envolvem estilos de vida e formas de
organização social e São Paulo é apenas
um exemplo do que acontece no Brasil e no mundo. As
razões de fundo para a falta de água estão relacionadas
ao desperdício diário que cada um comete e ao mau uso
do espaço urbano, com poluição industrial e doméstica
de rios, invasão de mananciais, impermeabilização
exagerada do solo (muito asfalto cobrindo o chão), deposição
irregular de lixo e superpopulação. O
gasto desnecessário de água vem sendo comentado há
muito tempo, mas, segundo especialistas das áreas hídrica,
econômica e até psicológica, o combate a ele é
equivocado, por ser baseado principalmente em campanhas publicitárias,
em vez de em medidas que induzam a mudanças reais de comportamento.
Dados estaduais apontam
que a Grande São Paulo desperdiça 1,8 bilhão de
litros por dia, quase um terço do que é distribuído
e suficiente para abastecer 3,7 milhões de pessoas por quase
48 horas. Do total desperdiçado, 1 bilhão de litros (56,6%)
são atribuídos aos usuários. Outros 773,4 milhões
escoam por furos dos canos da própria Sabesp.
Exemplos de outros países e estudos mostram que o combate ao
desperdício deve ser mais amplo. As campanhas publicitárias
realizadas pela Sabesp devem ter caráter permanente, não
só no verão ou em momentos de crise, dizem os especialistas.
Mais ainda: essas campanhas não podem ser isoladas. É
preciso oferecer alternativas concretas e induzir a população,
por mecanismos legais ou por incentivos econômicos, a adotar equipamentos
mais econômicos, bacias sanitárias, chuveiros e torneiras
que gastam menos.
Estudos de psicologia mostram que as pessoas, em geral, não abrem
mão de sua satisfação pessoal para pensar na coletividade.
Trabalhos como o da psicóloga social Nancy Cardia, doutora pela
London School of Economics, especialista em conflitos de cooperação
e co-autora de obras sobre campanhas de educação pública
para economia de água; demonstram esse egoísmo social.
Para agir, as massas precisam estar diante de uma situação
de crise, como agora, ou então precisam ser estimuladas, com
prêmios (descontos) ou com punições (multas).
Ricardo Toledo Silva, 52, professor titular da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da USP, autor de documentos do Programa Nacional de Combate
ao Desperdício de Água, concorda. "Houve, ao longo
dos anos 80 e no início dos 90, uma idéia generalizada
de que bandeiras ambientais teriam um poder sem precedentes de motivar
atitudes altruísticas de parte da população, tendo
em vista o bem comum e os direitos das gerações futuras
a um ambiente saudável.
No entanto a realidade não é bem essa. Passado o efeito
emocional de algumas campanhas que mobilizam pessoas em torno de situações
agudas, o comportamento volta a ser predatório, a menos que se
imponham sanções severas." Segundo o professor, colocar
uma placa ao lado da torneira, pedindo para fechá-la logo após
o uso, funciona menos do que instalar um equipamento com fechamento
automático, como se vê hoje.
Jaildo Santos Pereira, 35, doutor em gestão de recursos
hídricos pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e consultor da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério
do Meio Ambiente, observa que a visão dos administradores precisa
mudar. Em vez de buscar novas fontes de água, é necessário
aproveitar melhor as que já estão disponíveis,
reduzindo o consumo perdulário. Segundo
ele, há dois tipos de medidas: as não estruturais e as
estruturais. Entre as primeiras, estão as campanhas educativas,
úteis, mas que necessitam de complementação. Essa
ação adicional se pode obter com as medidas estruturais,
as substituições de equipamentos gastadores. Uma descarga
sanitária convencional, por exemplo, utiliza 12 litros, enquanto
uma mais moderna gasta apenas a metade disso.
Outro componente
que influencia o gasto doméstico é o chuveiro. Conforme
Douglas Barreto, pesquisador do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas),
os chuveiros elétricos já têm uma vazão baixa
três litros por minuto. As duchas dos sistemas de aquecimento
a gás é que gastam mais: 9, 12 ou 16 litros por minuto.
Um jeito de cortar isso é instalar um redutor de pressão,
o que faz com que elas utilizem seis litros por minuto. Assim, o consumo
cai automaticamente em 15% a 20%. Mas o que pode estimular o consumidor
a se dar ao trabalho de trocar seus equipamentos? A experiência
internacional mostra que os gestores do sistema hídrico podem
oferecer estímulos, como créditos na conta de água.
A Sabesp tem resultados extraordinários com medidas estruturais.
Misturando campanhas educativas com ações efetivas, como
conserto de vazamentos e instalação de equipamentos econômicos,
a redução do consumo nesses projetos foi de 26% (na USP)
a 94% (numa escola estadual a Fernão Dias Paes, em Pinheiros,
zona oeste de São Paulo). Se a técnica existe, por que
não se resolve tudo de uma vez? No meio do caminho, há
interesses políticos que, muitas vezes, se sobrepõem às
necessidades coletivas.
Vaidades e desavenças pessoais podem dificultar essas relações.
Os especialistas defendem que as decisões sejam tomadas de maneira
coordenada e isenta entre as camadas do poder.A academia e a realidade
mostram claramente: as autoridades precisam se mexer para estimular
comportamentos positivos do usuário. Só os poucos militantes
verdes agem por vontade própria nesse campo e isso não
é o bastante para melhorar nossa vida.
Armando Pereira Filho, 40, editor-assistente de
Veículos e Construção, é mestre pelo Programa
de Ciência Ambiental da USP, com pesquisa sobre combate ao desperdício
de água. |