PONDO TUDO A PERDER

Antonio Carlos Mendes Thame

O Governo do PT recebeu uma herança bendita e colhe os louros de uma safra agrícola recorde (120 milhões de toneladas de grãos, segundo o Ministro Roberto Rodrigues), sem que quase nada tivesse sido plantado neste ano. É safra cujo plantio, com exceção da “safrinha” de milho, ocorreu em 2002. Os números do campo impressionam. A agropecuária já responde por 27% do PIB, cria 37% dos empregos e é responsável por 40% das exportações brasileiras. Além disso, é o único setor que gera superávit (mais de 20 bilhões de dólares) na nossa balança comercial. Não fosse o agronegócio, o País estaria em situação crítica.
O que está por trás desse extraordinário sucesso? A nosso ver, quatro fatores.
O primeiro é a securitização das dívidas. Em 1996, iniciou-se a repactuação, por prazos que superam 20 anos, das dívidas de mais de 300 mil agricultores, dívidas estas herdadas do período de superinflação, quando os indexadores econômicos corrigiram os débitos dos contratos com os bancos em percentuais muito acima da variação dos valores recebidos pela venda da produção, gerando um descasamento que tornava impagáveis os empréstimos.
O segundo fator é a pesquisa agrícola. Não é de hoje que ela vem dando extraordinário suporte à produção. Sem a pesquisa, não haveria variedades adaptadas às nossas condições, nem a agricultura de precisão, nem teríamos conseguido incorporar as terras dos cerrados e estaríamos com a fronteira agrícola esgotada. Cerrados que transformam o Brasil hoje na mais vigorosa agricultura tropical do planeta.
O terceiro fator é o programa Moderfrota. A agricultura brasileira registrou nos últimos anos um notável crescimento, não somente na produção por hectare, mas também na área cultivada por homem, para o que contribuiu decisivamente o programa Moderfrota, linha de financiamento do BNDES criada para que os produtores, com juros subsidiados entre 9,75% e 12,5% ao ano e prazos de pagamento entre 5 e 6 anos, pudessem adquirir tratores, implementos, colheitadeiras, cultivadores e equipamentos para secagem e beneficiamento de grãos. De março de 2000 a dezembro de 2002, foram aplicados R$5,6 bilhões para financiar a aquisição de quase 50 mil tratores e mais de 12 mil colheitadeiras.
Quarto fator: a relativa tranqüilidade de que os agricultores não teriam suas terras invadidas ou desapropriadas com base em critérios meramente políticos, o que só foi conseguido em parte, graças: a) a vigoroso esforço de assentar famílias sem terra; b) à edição de medida provisória, transformada em lei, que impede por 2 anos a desapropriação de áreas invadidas e exclui os invasores, que eram cadastrados, de assentamentos em outras áreas; c) ao cabal cumprimento das decisões judiciais para reintegração de posse de áreas.
A reforma agrária feita sem alarde no governo anterior foi o mais ambicioso plano de distribuição de terras já executado de forma democrática em todo o mundo. O governo FHC destinou R$ 13,2 bilhões para retalhar quase 20 milhões de hectares, área maior que o Uruguai, e neles assentou 588.000 famílias. Quase 2 milhões de brasileiros receberam terras, entre 1995 e 2002.
Se boa parte dos assentados ainda não prosperou, foi porque só assentar não é suficiente: faltou crédito (nem mesmo os vultosos R$ 14,5 bilhões em 7 anos de PRONAF foram suficientes), faltaram recursos técnicos para cultivar o solo de maneira produtiva e também faltou, em muitos casos, vocação para a vida e o árduo trabalho no campo.
De toda forma, o governo FHC mostrou: a) que é possível iniciar e promover no País ampla reforma agrária, sem desrespeitar as leis, superando os longos entraves burocráticos que começam com as vistorias e vão até a imissão na posse de uma área para nela proceder ao assentamento de famílias; b) que não são excludentes (ao contrário, podem e devem coexistir) políticas de apoio ao agronegócio e à agricultura familiar; c) que existe uma crucial diferença entre uma efetiva e desejável reforma agrária (que agrega e promove) e um mero processo de invasões (que desagregam e desestimulam a produção).
O que mudou no Governo Lula? Em primeiro lugar, o governo parou de assentar. A meta inicial do Governo do PT era assentar 37 mil famílias neste ano, mas o Orçamento só dispõe de R$250 milhões, suficientes para assentar 27 mil. Meio ano já se passou, e o Governo praticamente assentou ninguém. Somente iniciou a desapropriação de 197 mil hectares de terras, nas quais, quando concluídos os processos, poderão ser assentadas apenas 6 mil famílias. Em segundo lugar, o Governo criou tácitos estímulos às invasões de terras, ao sinalizar que nada fará para impedi-las, ou seja, não aplicará as leis atinentes à matéria. Com isso, desaparecem as ações políticas para levar segurança, assegurar o exercício da justiça e dar estabilidade ao campo, a fim de que possa em paz e continuar a produzir. Em seu lugar, intensificam-se as invasões e inaugura-se uma escalada de crescente desobediência civil, desrespeito ao Estado de Direito, de afronta e enfrentamento, para desmoralizar as autoridades e, o que é pior, as próprias instituições.
Nenhum Governo tem condições de impedir completamente as invasões, mas pode e deve desestimulá-las, acelerando os assentamentos, aprimorando as condições de vida dos que já foram assentados e zelando pelo cumprimento das leis e das decisões judiciais.
A presente omissão ou ausência de consistente política fundiária pode redundar em tremendo retrocesso e colocar a perder um processo de desenvolvimento social que já está transformando o Brasil num dos principais celeiros de um mundo que tem fome.

*Antonio Carlos Mendes Thame, Deputado Federal (PSDB/SP), é professor (licenciado) do Departamento de Economia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” / USP

Pronunciamento feito em 24 de julho de 2003 na Câmara dos Deputados



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