A TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO É VIÁVEL? |
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Uma luta coroada |
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Não há água suficiente |
Acredito que as dúvidas que ainda persistem acerca da oportunidade da ligação da bacia do
rio São Francisco às bacias hidrográficas de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte
e Ceará prendem-se a alguns equívocos que têm acompanhado a discussão do tema ao longo
do tempo. Muita gente supõe que se trata de obra faraônica, sem muito propósito. A suposição é equivocada. Os custos da iniciativa estão orçados em torno de R$ 3 milhões. Tais valores correspondem justamente aos dispêndios da União nas duas últimas secas rigorosas. Quanto à sua pertinência, basta indicar que a falta de alternativa para as situações de seca prolongada (tenha-se presente que até hoje não dispomos da possibilidade de prevê-las) obriga à operação conservadora da água armazenada nos grandes açudes, com elevadas perdas por evaporação, com o agravante da salinização, que limita seus usos. Usualmente as perdas superam a quantidade de água disponibilizada para uso múltiplo. O projeto da transposição do rio São Francisco garantirá melhores níveis de disponibilidade hídrica, independentemente das secas, assegurando sua utilização racional, notadamente dando garantias de continuidade e qualidade da água aos projetos de irrigação, que são o caminho natural da modernização da agricultura nordestina, passo que falta empreender para eliminar os bolsões de pobreza remanescentes. Portanto a transposição não corresponde a nenhuma megalomania, mas ao coroamento da luta contra as secas em que se têm empenhado sucessivas gerações. Por essa razão, trata-se, como tenho insistido, de um projeto nacional, em seu todo coerente com as magníficas manifestações de solidariedade que a nação tem prestado aos nordestinos sempre que deparamos com as situações dramáticas representadas pelas secas prolongadas. Estabelecido que o projeto da ligação entre as bacias hidrográficas nordestinas é benéfico para a região e apresenta custos suportáveis, resta outra pergunta: a transposição prejudica os demais Estados percorridos pelo rio São Francisco? Os estudos que têm sido desenvolvidos respondem negativamente. Em primeiro lugar, a transposição representará menos de 3% da vazão do rio (equivalendo a 75 m3/segundo, que é o consumo de água de qualquer dos maiores projetos de irrigação existentes na bacia). Além disso, a decisão de acionar ou não o bombeamento dar-se-á respeitando sempre o uso múltiplo de suas águas. Quanto ao argumento contra a transposição de que o rio estaria morrendo e de que não se pode retirar água de onde ela não existe ou é escassa, a colocação impressiona, mas não tem a mínima procedência. É indiscutível que o São Francisco, assim como vários outros rios brasileiros, tem problemas relacionados a desmatamento, erosão, assoreamento, despejo de esgotos sanitários, poluentes oriundos da mineração, lavagem e carreamento de agrotóxicos, desvios ilegais e irresponsáveis de água etc. Isso requer tratamento específico, não existindo razão que relacione esse problema à transposição. Independentemente dela, o governo federal patrocina todo um conjunto de ações com vista a adequar o desenvolvimento daquelas áreas aos imperativos da preservação ambiental, dispondo-se hoje de um plano diretor, que corresponde à consolidação de planos existentes em nível estadual. É preciso ter presente que o país conta hoje com uma política de preservação de seus recursos hídricos, atentos que estamos para a magnitude que assumirá crescentemente a questão do uso da água em nosso planeta. Tivemos no século que agora chega ao fim grandes conflitos motivados por religião, ideologia, política e pelo controle das reservas de petróleo. No século 21 certamente adicionaremos a esses conflitos a problemática da escassez da água. No caso do semi-árido, a situação, já trágica em época de seca, será agravada de forma desumana e brutal se a transposição não for feita. O dado positivo é que ali a água pode existir. Precisa-se apenas de vontade política para sair do círculo vicioso do drama e da solidariedade. |
Fernando Bezerra, 59, senador licenciado (PMDB-RN) e presidente licenciado da Confederação Nacional da Indústria (CNI), é ministro da Integração Nacional. |
A comissão da Câmara que examina a transposição do São Francisco realizou, até
agora, diversas e proveitosas audiências. Curiosamente, nem os que defendem a "transposição"
se empenharam em demonstrar sua viabilidade hídrica. E os números básicos apontam na direção
oposta. A vazão média do São Francisco é de 2.800 m3/segundo. A mínima garantida para produção de energia elétrica é de 2.060 m3/segundo. A quantidade que se perde com a evaporação chega a 200 m3/segundo. Outros 200 m3/segundo são usados em projetos de irrigação. O sistema, conta, pois, com apenas 340 m3/segundo para "outros usos". Só a área da bacia do São Francisco potencialmente irrigável é de 3 milhões de hectares, sendo que o último plano de desenvolvimento do vale do São Francisco a reduz para 2,5 milhões de hectares. O índice de cálculo aceito para irrigação nesses casos é de meio litro por segundo por hectare, o que significa que a irrigação prevista para os 2,5 milhões ou 3 milhões de hectares demandaria 1.250 m3/segundo ou 1.500 m3/segundo. A água disponível nas condições atuais é, assim, um quinto da necessária à irrigação da área prevista na própria bacia. O professor José Theodomiro de Araújo, um dos maiores estudiosos do São Francisco, revelou na comissão que, durante 65% do tempo nos últimos 50 anos, a vazão do São Francisco ficou abaixo da média indicada; que estudos da Cesp, de São Paulo, concluíram estar o rio inviabilizado para aproveitamentos econômicos nos próximos 15 anos, a continuar no caminho atual; que os 50 m3/segundo previstos na "transposição" são insuficientes para os Estados do Nordeste setentrional. A transposição das águas do São Francisco, como está no projeto governamental, não é viável e não é solução. Há pouco tempo, nesta mesma Folha, o ex-governador Miguel Arraes mostrou que a União realizou, em toda a sua história, apenas três grandes obras no Nordeste: a rede ferroviária, iniciada no Império; a rede rodoviária, implantada a partir de 1930; e a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), ameaçada de ser vendida. O número três dessas grandes obras realça o desprezo, quase afronta, com que os governos da República têm tratado a região nordestina. A solução da crise hídrica do Nordeste é pressuposto também de seu desenvolvimento e está a exigir um quarto e grande projeto da União no Nordeste, seguramente caro, porque o Nordeste não pode aceitar, por ser barato, o projeto de dividir entre os sedentos a pouca água existente. O quarto grande projeto federal para o Nordeste deve ser reforçar, com muita água, o São Francisco -e então abastecer, com água suficiente, as bacias nordestinas ressecadas. Há uma ligação natural entre as grandes bacias do Tocantins e do São Francisco que pode trazer a solução. A integração entre elas poderia significar o reforço substancial que o São Francisco precisa. O governador do Estado de Tocantins -e nordestino-, Siqueira Campos, informou à comissão que já assumira essa idéia como preliminar para o encaminhamento do problema hídrico do Nordeste. Afinal, ante um São Francisco com vazão média de 2.800 m3/segundo, o reforço de um Tocantins, que tem vazão média de 11 mil m3/segundo, é uma grande saída. Já o depoimento do governador Itamar Franco, de Minas Gerais, alertou todos da comissão para questão decisiva. Toda essa discussão ficará inteiramente prejudicada se prosperar a intenção governamental de privatizar Chesf. Afinal, quem comprasse as hidrelétricas da Chesf não iria aceitar que se deslocassem as águas necessárias ao giro de suas turbinas. |
Haroldo Lima, 60, engenheiro elétrico, é deputado federal pelo PC do B da Bahia e integra a comissão especial destinada a analisar a transposição de águas do rio São Francisco. |
Folha de Sâo Paulo, 11 de março de 2.000, p.1-3 |
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