A
palestra seria para uns 300 empresários, homens e mulheres. Depois
viriam as perguntas e, finalmente, o almoço.
Chegando lá, vi que estava enganada: eu falaria enquanto eles
almoçavam. Escritores habituaram-se a falar em público
– é uma espécie de moda a gente ser convocado para
entrevistas ou palestras sobre os temas mais variados: psicologia, sexo,
política, religião e por aí vai. Mas me incomodou
a idéia de pessoas manejando talheres e copos, mastigando e quem
sabe conversando enquanto eu falasse. Não havia como voltar atrás:
a culpa era da minha desatenção, de não haver entendido
direito o convite.
Todos sentados,
feitas as apresentações, dados os avisos, comecei a fala
achando que todos percebiam meu desconforto. O tema da palestra era
"Transgressões positivas". Eu não podia cometer
a primeira, levantar da cadeira e ir embora? Não, não
podia. Ninguém tinha culpa da minha trapalhada. Agora era cumprir
meu dever, e fazer isso com a mesma simpatia com que aquelas pessoas
me olhavam.
Transgressão positiva, comecei então, podia ser, por exemplo,
vencer o espírito de manada e a coerção da superficialidade
que nos esmagam neste nosso mundo. Um pouco de frivolidade é
necessária: que os deuses nos livrem de sermos solenes. Mas de
vez em quando, acrescentei, pode-se usar a superfície da vida
como trampolim para algum mergulho de reflexão, de reavaliação
e quem sabe de reinvenção da nossa vida. O problema inicial
é que estamos acorrentados a muitos deveres, sobretudo empresários
cheios de responsabilidades com funcionários, operários,
acionistas e toda uma complexa engrenagem da qual eu, escritora, confessava
ter apenas uma idéia difusa. O que era certo era a morte estar
empoleirada em nosso ombro, espiando com seu inquietante olho de coruja:
o que é que a gente podia fazer com tal inquilina?
Talvez a primeira boa transgressão, continuei, seria aproveitar
o susto para pensar. Falamos muito em ética, mas, com mais freqüência
do que o confessável, escutamos a conversa de nossa mulher ou
marido na extensão do telefone. Falamos em justiça social,
mas eventualmente pagamos o menor salário possível à
nossa empregada e lhe servimos um prato feito. Segui por esse caminho,
num trote pouco amigável – em voz mansa.
De repente me dei conta de que alguns pararam de comer, mas não
se mostravam ofendidos com minhas alusões. Ao contrário,
pareciam compreender que eu me incluía em tudo aquilo. Entre
nós circulava aquela cumplicidade de iguais a que eu me habituara
com leitores, mas não esperava de homens de negócios.
Terminei a palestra ainda vagamente intrigada, mas as palmas foram cálidas.
Um empresário venerando pediu a palavra. "Esse vai me trucidar",
pensei. Ele me olhou direto nos olhos e indagou no silêncio atento
que se abria:
"Quantas vezes a senhora acha que a gente pode amar na vida?"
Respondi, surpresa:
"Sempre que nos sentirmos demais sozinhos e a vida nos oferecer
esse milagre, e nós tivermos as condições e a coragem
de concretizá-lo".
Senti que, naquele momento, as palmas foram não para mim, mas
para ele. Para a vida que ali se expressava com tal dignidade.
Saí dessa experiência com mais um dos meus preconceitos
destruídos. Numa dessas contradições animadoras,
o que começou mal acabou bem – principalmente porque um
homem se postou diante de todos com a tranqüilidade dos sábios,
sem receio de enfrentar seus pares, de se mostrar vulnerável,
de assumir sua real grandeza: a de ser uma pessoa como qualquer outra.
Vi confirmada, mais uma vez, minha suspeita de que no fundo o que prevalece
em todos nós, centro de nosso desejo e raiz de nossos temores,
nossa glória e possibilidade de nossa danação,
são os velhos e imutáveis sentimentos humanos.
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